Un Chien Andalou
(farsa,
FRA, 1929),
de Luis Buñuel.
por Paulo Ayres
É necessário falar sobre Un Chien Andalou. Isso já parte de uma posição que reconhece todo o peso extrafílmico que foi se formando em torno desse curta-metragem, que, diferente dos pianos que estão presos a certo personagem, tem uma relevância objetiva, tal como reconhecer que tal ideia e ideologia têm, ou podem ter, um peso ôntico como força material na sociedade. Diante dessa primeira provocação, para ficar na proximidade de provocadores estéticos, estabelece-se uma aproximação avaliativa em dois movimentos distintos e combinados: um reconhecimento do valor positivo distorcido pela obra formalmente ousada, mas junto a isso uma sentença sem dó com certo deboche sobre a esquisitice intelectual que se perde em si mesma. Com isso, o presente texto pretende se afastar do gosto iconoclasta de martelar algo que, não só tem muitos admiradores, mas um lugar conquistado nos estudos de arte. Até porque o que é algo justamente vazio e confuso é a iconoclastia pela iconoclastia, a negação pela negação — não confundir com a dialética negação da negação, uma superação qualitativa diferente do que propõe os relativistas.
Como Un Chien Andalou é uma obra ficcional que se gaba da sua falta de sentido bem delineado, que se apresenta como aberta a uma pluralidade de interpretações quanto ao seu nexo interno de desenvolvimento narrativo e significação, é preciso procurar uma base analítica em seus aspectos históricos de produção. Temos dois jovens artistas vanguardistas criando seu primeiro filme em 1929, financiado pela mãe de um deles. Esse último dado é realmente relevante ou apenas uma ironia com as fixações paterna e materna que são feitas pelo fetiche do inconsciente (psicanálise)? Fica aberta e inconclusa tal digressão no presente texto, mas é uma oportunidade de apontar para uma das inspirações que originaram a corrente de arte niilista conhecida como surrealismo. Um dos roteiristas é ninguém menos que Salvador Dalí, de quem é preciso reconhecer o grande talento de pintar “sonhos”, se é que sonhos são assim: seus quadros são muito bem desenhados, no sentido de traços quase fotográficos, e servem de adorno de uma paisagem entorpecente como adereço fantástico — comparado com outras expressões da arte niilista, há algo até bem concreto, às vezes perto de uma simbologia consistente como arte estática. A outra cabeça por trás de Un Chien Andalou será associado como o grande nome do surrealismo na expressão cinematográfica, Luis Buñuel. Com ele, podemos ver uma linha evolutiva na filmografia, de modo que, apesar de continuar sendo rotulado como um “surrealista”, representante desse movimento, algo distinto vai tomando forma e, nesse sentido, um filme como Le Charme Discret de la Bourgeoisie (1972) é, na verdade, realismo... mágico — no sentido preciso do gênero de ficção mágica. Há uma dosagem dos elementos fantasiosos num fio condutor ficcional; esses usados, sabiamente, como realçadores metafóricos de uma estrutura com certa solidez fluída de significação e continuidade.
Entretanto, antes desse discreto charme, houve o indiscreto disparate. Diante de Un Chien Andalou não é necessário olhar com um ar de superioridade intelectual e passar a mão no queixo comentando “interessante...”. Parafraseando o camarada Arthur D'Elia falando sobre a poesia vanguardista que se perde na abstração formal: eu não entendi, você entendeu? Mesmo Un Chien Andalou não sendo uma aleatoriedade absoluta, no sentido de planos e sequências sem absolutamente nada de lógica, sua história está tão sobrecarregada de elementos soltos, acavalados, dispersos e conduzidos com um gosto de pluralidade de significados, que, antes de tudo, nesse caso é preciso ir no que disse os autores da obra para tatearmos algo. Abre-se um parênteses aqui sobre o reflexo estético: nem sempre há uma explicação direta entre a intencionalidade do artista e o resultado artístico; além disso, há, por exemplo, provocadores estéticos de esquerda que se perdem na arte degradante e, alguém como Balzac, na sua ideologia política e moral um conservador, mas produziu grande arte na literatura — quando isso ocorre, a arte não se limitando a um visão de mundo limitante do artista, Engels observou um movimento de “triunfo do realismo”. Sobre o significado de Un Chien Andalou, o próprio Buñuel confirmou que é uma colagem sem um sentido específico e aberta a inúmeras interpretações. Ainda assim, deve haver gente que jura que descobriu o significado oculto e vai nos revelar o conteúdo sério naquela confusão. Outros sabem do caráter abertamente irracionalista dessa sátira, mas se esforçam para procurar pontos de nexo — por exemplo, a interessante interpretação do canal Refúgio Cult no Youtube, que admite a natureza da proposta da obra e que está como tirando leite de pedra na análise.
Para chegar a conclusão que se trata de um filme de quinta categoria não é difícil e isso, em vez de ofensa, talvez possa soar como elogio para os realizadores e fãs de arte niilista que entendem como uma “missão cumprida” na sua noção de função estética que causa desconforto. Primeiramente se reconhece, de fato, o pioneirismo como experimento artístico de cinema mudo e preto e branco, especialmente no quesito de edição e narrativa não-linear. Na colagem há também ousadia e impacto em certos elementos soltos como referências à religião, uma nudez de peito e bunda meio desfocada, uma mão amputada e outra com um buraco da onde sai formigas. Formigamento na mão? Não se pode afirmar, mas essa “piada” está num contexto audiovisual tão desestruturado que a qualidade como ficção fica comprometida, de modo que a classificação como uma farsa metalinguística emerge mais por constatar que é um amontoado de sinalizações metafóricas jogadas de forma tão solta que, ao mesmo tempo, indica o soterramento pesado em um determinismo sofístico.
Deixando o começo para o fim, resta-nos mencionar a famosa sequência de abertura, antes da película avançar oito anos e, depois, retrocede no tempo, dezesseis anos. Nuvens no céu passam como se cortassem uma visão de lua cheia. Logo, num jogo de montagem, o olho de uma mulher é cortado com uma navalha. Dizem que foi de um animal morto na filmagem, mas o fato é que o caráter experimental sacrificou o olhar ficcional e encontramos aí uma metáfora do corte cadavérico e o apagamento farsesco do absurdo fechado em si, da maneira mais bocejante possível.
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