Piedade
(tragédia,
BRA, 2019)
de Cláudio Assis.
por Paulo Ayres
É complicado julgar uma obra de ficção por algo que alguma personagem diz, pois se sabe muito bem que personagens não estão necessariamente ali para dissertar sobre algo. Embora isso possa ser feito, assim como ironizar o pensamento do emissor ficcional. Em Piedade, há discursos para todos os gostos. Há desde a lábia mercadológica de Aurélio (Matheus Nachtergaele) até o lamento saudosista de Omar Sharif (Irandhir Santos), passando por algumas intervenções mascaradas de um grupo de jovens anarquistas, denunciando a megaempresa petrolífera através de filmagens e pichações. Entretanto, não importa qual ideologia está sendo exposta no momento específico do desenvolvimento, Cláudio Assis, novamente, faz um nivelamento na região pernambucana que filma.
Dono de um tipo de cinema-motel, Sandro (Cauã Reymond) se integra na espelunca escura, como se aquele ar devasso moldasse sua personalidade. E como não pode filmar o cheiro, Assis faz questão de informar, através de uma fala, que o lugar fede a sexo. Um conjunto de câmeras de segurança invadem os cubículos como animais em jaulas. Figura sexualizada e entorpecida, Sandro diz, em certo momento para o filho Marlon Brando (Gabriel Leone), que ele não está com uma raivinha, mas com ódio. A boca diz isso, o personagem continua letárgico, blasé.
Diga-se de passagem, não tem a ver com a atuação dos atores, mas como o naturalismo estético generaliza a apatia por todos os núcleos. De modo que até Fernanda Montenegro, fazendo a Dona Carminha, se coisifica nesse cinema de contemplação geográfica com peso determinista —
uma exceção é um sonho estranho no contexto. Há belos planos. Enquadramentos como uma pintura paisagística. No entanto, nessa proposta de tragédia audiovisual do cineasta pernambucano, é estabelecido um distanciamento afetivo. Além disso, não basta o mapeamento, no caso a chamada Praia da Saudade e outros locais, o drama naturalista busca uma conexão forçada com o ambiente. O tubarão torna-se um símbolo objetivista que diz pouco além de ser aquilo que é: um peixe predador que ronda a família ou é “jogado” na tela. Em Amarelo Manga (2002), Assis coloca uma cena de um bovino sendo morto de verdade num matadouro. Em Piedade, sonho ou não, um tubarão ensanguentado emerge.
Omar é dono de um boteco praieiro e ensaia a força de resistência contra a PetroGreen — Irandhir com cabelos longos só faltou fazer ioga. Seu sobrinho adolescente não pode entrar nas ondas agitadas, mas “mergulha” numa projeção de realidade virtual. Algo que foi pensado mais como uma ironia simbólica, visto com essa distância narrativa, afirma o fechamento de um aquário humano. E se é complicado julgar uma ficção por algo que uma personagem diz, a mãe de Aurélio, via conexão por notebook, obviamente está ali como objeto burguês e familista de deboche; porém, esse cordão umbilical com wi-fi comenta que enxerga uma canalhice geral. Um dado naturalizado que a tragédia insinua com sua forma estética.
= = =
Nenhum comentário:
Postar um comentário