sábado, 19 de abril de 2025

Tempero realista

Dona Flor e Seus Dois Maridos
  
(dramédia,
BRA, 1976)
de Bruno Barreto.


 
por Paulo Ayres

Não é possível falar da adaptação de Bruno Barreto de Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966), de Jorge Amado, sem dar a devida importância para a escolha das locações de filmagem. A área preservada de Salvador é essencial para transmitir a sensação de época e deixar a encenação dramática com uma solenidade de convivência próxima. A cenografia real, com suas ruas antigas e casarões com alguns vizinhos nas janelas, não tem uma função gratuita. É o ingrediente certo para que a fachada do patrimônio cultural, com a solidez de reconhecimento, traga o tema da família nuclear e sua fachada.

Antes de falar sobre essa fachada ideológica, é preciso estar de olho nos aspectos econômicos. Dona Flor (Sônia Braga) trabalha como professora de culinária. Sabor & Arte é o nome do negócio. Vadinho (José Wilker) é a encarnação (e o espírito) da malandragem e da vida desregrada. A primeira metade da dramédia sobrenatural é sobre os anos desse primeiro casamento. Entre afeições e abusos, o “maluco porreta” gasta o dinheiro da casa em jogatina e festas. A presença de um cassino é filmada com tanta imponência no contexto dos costumes quanto o grande altar católico ou o terreiro de candomblé. Uma espécie de sincretismo que equipara, na tela, os pedestais modernos de adoração. O segundo casamento de Dona Flor é com o metódico Dr. Teodoro Madureira (Mauro Mendonça). Se ela ensina o artesanato culinário, o farmacêutico, por sua vez, defende a farmacologia artesanal. Faz parte de uma associação da área que discursa pelo método tradicional da classe artesã contra o processo de industrialização medicinal. Esses dados não são apenas detalhes, pois indicam transformações graduais na sociedade brasileira da década de quarenta (do século passado). Nesse sentido, Dona Flor e Seus Dois Maridos é uma obra com uma complexidade maior que uma mera fantasia sobre um trisal com um boêmio devasso e um erudito soca-fofo.

Todo Carnaval tem seu fim e Vadinho morre, ironicamente, no domingo da festança em 1943. Agora sim, analisando a camada familiar em suas conexões afetivas, o entrosamento patriarcal revela contradições em níveis distintos. Provavelmente, Dona Flor casou com Vadinho no acordo monogâmico, mas passou a fazer vista grossa e, por fim, aceita, de forma submissa, a abertura do lado do “vagabundo, cachaceiro, gigolô, picareta, sem vintém, jogador e moleque” (adjetivos da sogra no velório). Abaixo de Dona Flor na hierarquia domiciliar está a empregada doméstica. Insinuações, não confirmadas, indicam que seria uma concubina em certas ocasiões. Teodoro, com sua seriedade rígida, troca de trabalhadora quando passa a ser o marido.

É na meia hora final que Barreto completa o trio de acordo com a possibilidade metafórica de uma ficção fantasiosa. O fantasma de Vadinho — tateável para Flor — permite a bigamia, que é proibida na lei brasileira. O “até que a morte os separe” não acontece e faz o drama realista sobrepor adultério e poliamor. Essa sobreposição em forma de trisal, que continua casal, reflete as limitações contraditórias da monogamia. Também indica as expressões da tendência poliamorosa, que permeiam a vida cotidiana de várias formas, mas, ao mesmo tempo, são reguladas por acordos conjugais e camufladas pela fachada da cultura predominante. Por isso casou bem o jogo cênico da fachada histórica, uma tradição em concreto, e as intimidades maleáveis, seja na esbórnia ou em reconfigurações cotidianas. A presença do fantasma pelado e marido-amante pode não responder, de maneira definitiva, o que é aquilo que a canção-tema de Chico Buarque tanto indaga — como trilha incidental ou na voz de Simone —, mas aponta para o devir cultural e a dialética público/íntimo. Está na fantasia dos infelizes e dos felizes.

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Lista de fantasy dramedy no subgênero supernatural fiction:
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