quinta-feira, 17 de abril de 2025

Luto realista

Beetlejuice Beetlejuice
 
(comédia,
USA, 2024)
de Tim Burton.
 

por Paulo Ayres

De um período em que o chamado efeito fantasma poderia dar calafrios se associado com o termo sobrenatural, uma propaganda de um bio-exorcista surge num velho televisor no sótão, em Beetlejuice (1988). Do final da década de 1980 até os dias atuais muita coisa mudou e, inclusive, a tela que predomina agora são os celulares com internet, quase uma extensão corporal das pessoas. E é na publicidade intrusa, como o algoritmo de Big Techs, que Betelgeuse, desta vez, lança sua propaganda. Os convidados do casamento de Lydia Deetz (Winona Ryder) e Rory (Justin Theroux) são influenciadores digitais. Plataformas de redes sociais proliferam, no entanto, Beetlejuice Beetlejuice, a tardia e aguardada continuação do filme de Tim Burton, reflete muito bem o lado alienante da nossa vida cotidiana: a complexidade maior de uma conexão que isola. Usando o tema fantasioso do além, o passo além é conseguido desta vez.
 
Beetlejuice — ou Betelgeuse, que seja — assume a carapuça de anti-herói numa breve aliança tática com sua querida Lydia. A comédia sobrenatural deixa o crachá de vilão de fato para dois fantasmas: Delores (Monica Bellucci) e Jeremy Frazier (Arthur Conti). A primeira é a antiga esposa obsessiva de Beetlejuice que se refaz e o persegue. O segundo é um jovem fantasma que assombra uma casa durante vinte e três anos. O que seria a subtrama amorosa de Astrid (Jenna Ortega), filha adolescente de Lydia, revela-se um momento sombrio em que a rotina doméstica funciona de modo automático, mais ou menos como certos fantasmas de The Sixth Sense (1999). Enquanto isso, o mundo dos mortos ganha mais tempo de tela, comparando com a obra anterior. Ambiente farsesco que Burton explora mais, continuando com a proposta de ser um espelhamento esdrúxulo da dinâmica da sociedade contemporânea. Não é apenas uma repartição com fila de espera e escritórios, também possui um amplo espaço de embarque em que o Trem da Alma vai para o Grande Além. O que isso significa precisamente é um mistério, o fato é que, por ali, as mortes individuais continuam a ser espetáculos macabros que se cristalizam na aparência do desfecho.
 
Beetlejuice Beetlejuice se concentra no processo social de luto. Na superfície, até chama a atenção por queimar etapas do processo, indo diretamente para a aceitação. Mas algo persiste implicitamente, como a saudade que Astrid sente do pai. Indicações de que o filme se fecharia no tema do amor romântico e da conciliação familista são pistas falsas que ficam pelo caminho. Por trás de toda a confeitaria humorística com cobertura diet de horror gore, uma presença ausente — ou ausência presente — permanece nas entrelinhas. É como acordar de um pesadelo sozinha numa cama de casal.
 
Assim como Robert Zemeckis não contou com o ator Crispin Glover na continuação Back to the Future II (1989), Burton cria um flashback fatídico com uma animação do avião com Charles Deetz (Jeffrey Jones) caindo no mar. Em ambas sátiras realistas, a criatividade dá conta do recado. Antes de morrer, Delia Deetz (Catherine O'Hara) expõe sua galeria de arte niilista e Burton filma de maneira sóbria, permitindo que vejamos o lado patético das ideias da artista vanguardista — incluindo uma obra coisificadora com cobaia humana, viva, bem viva. O reencontro do casal no pós-vida é a cereja do bolo das elucubrações sobre a imortalidade das almas.
 
Como foi dito, o espaço do mundo farsesco se expande, há mais mistura, mas sem perder o predomínio da encenação comediesca. Se bem que as criaturas ectoplásmicas, aqui, possuem uma composição possível de tatear. Sejam policiais fantasmagóricos ou um verme de areia de uma das luas de Saturno, a cerimônia de casamento é invadida. A valsa matrimonial ao som de “MacArthur Park” é o grande momento musical dessa vez e o clímax da comédia. Três vivos penetram no mundo dos mortos. Beetlejuice passa a ser terapeuta de casal. Algo que indica a solidão a dois.

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