sexta-feira, 19 de julho de 2024

Pequena burguesia

Redentor

(comédia,
BRA, 2004),

de Cláudio Torres
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por Paulo Ayres

Entre as imagens bem artificiais de Redentor há um flashback com uma maquete de um prédio. Um projeto atentamente observado por dois garotos pequenos. Como maquete, ali está um tipo de rascunho, em escala reduzida, de uma objetivação almejada. Um modelo que reproduz mais um ideal de estabilidade do que uma realidade alcançada integralmente. Uma das crianças será o herdeiro milionário da empreiteira que construirá aquele condomínio, o outro menino pertence a uma das várias famílias que entrarão em prejuízo ao não receberem o apartamento que pagaram parceladamente durante muitos anos. Da amizade de infância ao ressentimento de adulto, Redentor, nos seus momentos iniciais, parece desenhar um conflito classista bem polarizado em seus contornos, identificando os pobres e os ricos, os mercenários e os enganados, o opressor e o oprimido. No entanto, um outro agente social ocupa — literalmente — o filme, mostrando o nível maior de complexidade que há na sociedade burguesa: 198 famílias dos operários que construíram o Condomínio Paraíso se apropriam dos apartamentos vazios, como forma de compensar a falta de pagamento da empresa. A simbologia da sátira tem como foco o limbo da chamada classe média representada no repórter Célio Rocha (Pedro Cardoso), como elemento intermediário da reprodução social e oscilando sua visão de mundo entre os ricaços e os pobretões.

Célio almeja o apartamento 808 do condomínio que seu pai pagou e não recebeu no acordo imobiliário, mas que está ocupado por uma das famílias de construtores. Sua meta de realização pessoal (e familiar) é uma contradição inserida em outra, mais ampla e profunda. Buscando seu objetivo, ele fará diversas mediações entre a classe operária e a classe capitalista.
 
Para reforçar o caráter simbólico do filme, o diretor Cláudio Torres escolheu um visual fechado de estúdio, geralmente escuro, havendo alguns planos aéreos do Rio de Janeiro que indicam um olhar de cima. É que uma divindade tem participação indireta na trama. Célio tem contato com Deus, o deus cristão representado na imagem da estátua do Cristo Redentor. Assim como a peça O Auto da Compadecida (1955), Redentor é uma comédia que usa alguns elementos do cristianismo, numa fábula de redenção, para falar sobre a desigualdade social e as contradições de classes. E, assim como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Célio é um narrador que está morto e o enredo é ele contando o que aconteceu e como morreu. Essa revelação divina indica, metaforicamente, a consciência de classe popular e operária tirando Célio da confusa — pois oscilante — consciência pequeno-burguesa. Contudo, como Redentor usa a religiosidade como instrumento de metáfora, a transformação do protagonista indica um tom de anticapitalismo romântico com caráter distributivo e franciscano. Além do fato de que não fica parecendo uma reflexão própria, mas somente o velho medo de ir para o inferno que impede ele de se aliar às maracutaias do megaempresário e seu desafeto Otávio Saboya (Miguel Falabella).

A estrutura estreita e moralista de sátira edificante faz jus ao título, mas, por outro lado, tem interesse num olhar amplo nessa sua “maquete” das relações sociais. Além da favela dos trabalhadores ao lado do condomínio, a ficção sobrenatural de Torres simboliza o lumpesinato na cela superlotada e em Soninha (Camila Pitanga), que, prejudicada por uma tramoia de Célio, acaba sendo expulsa da comunidade operária e virando prostituta. Redentor utiliza até a ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes, no seu álbum ostensivo, às vezes soturno, com um humor que varia tanto quanto a trilha sonora cheia de subidas e descidas na ênfase. Esse pêndulo estético está em sintonia com a camada intermediária retratada. 
 
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