quarta-feira, 7 de maio de 2025

Masculinidade realista

Boys Don't Cry

(tragédia,
USA, 1999)
de Kimberly Peirce.


por Paulo Ayres

É possível traçar alguns paralelos entre Boys Don't Cry e Million Dollar Baby (2004), além do fato de que são tragédias audiovisuais que renderam duas estatuetas de Oscar de Melhor Atriz para Hilary Swank. Ambos filmes terminam em mortes para uma trajetória sofrida, depois que a figura protagonista alcançou certo respeito em ambientes de predomínio masculino. No entanto, no drama de Clint Eastwood há um sacrifício redentor, como manobra de uma lógica binária com indivíduos bem delimitados e em construções geográficas específicas. Uma dessas regiões é um retrato nada amistoso de certa periferia. Em Boys Don't Cry as camadas familiares de brancos pobretões são a alma do filme. Não há um “lado de lá”, uma diferenciação essencial em outra cidade. É essa “comunidade” enorme — se é que possuem laços culturais para se classificar assim — que forma um palco vasto da desigualdade social nos Estados Unidos.
 
Morte abrupta, pesarosa, de um relato seco baseado em fatos reais. Kimberly Peirce, contudo, coloca a cinebiografia na medida certa. Não há nada de edificante naquela repugnância violenta. E, apesar dos pesares, não apaga as conexões amistosas e familiares que Brandon Teena adquiriu antes naquela região. Mesmo nos momentos traumáticos do esconderijo da parte final, havia algo de belo em como Lana Tisdel (Chloë Sevigny) traz certo conforto afetivo para Brandon e para a narrativa. Uma cumplicidade afetivo-sexual como uma porta de compreensão. Seria fácil Peirce cair no maniqueísmo explícito, mas há uma certa aversão e espanto preconceituoso se espalhando pelos ares da casa, que antes fora tão acolhedora — presente, em detalhes, até no depoimento ao policial. Os dois ex-amigos que se revelam brutamontes monstruosos somente canalizam a estupidez reinante.    
 
Essa proposta temática visa fazer um contraste entre uma masculinidade tóxica e uma masculinidade ética, que indicaria uma necessária dose de feminilidade? Não me parece que o drama realista entre nessa tentativa de classificação, embora, de qualquer forma, o reflexo estético apresenta uma variação comportamental da masculinidade no nosso contexto histórico. Brandon verbaliza sua crise de autoimagem. No início, no trailer de um amigo, rejeita o rótulo de lésbica. Diante dessa identidade transexual e da crueldade fatídica com sua anatomia, o caso brutal de LGBTfobia sinaliza as fronteiras próximas e frágeis de uma determinada opressão.
 
Obviamente, a sutileza é uma marca característica da encenação tragediesca. Peirce, nesse sentido, só precisa de sinalizações discretas — ou mais ou menos discretas — para mostrar que a masculinidade que Brandon incorpora, como sua postura em sociedade, passa por demonstrações de coragem e assertividade, para além do cabelo “joãozinho”.  O perfil é de um boêmio com contravenções a caminho de Memphis. Lana, por sua vez, deixa de ser contemplada como operária na janela grande, para ter um contato cada vez mais próximo com o jovem. Logo, as imagens de carro e sofá cheios de gente dão lugar a uma intimidade mais intensa. Algo que a moça leva consigo no seu caminho, mesmo após o acontecimento trágico.

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