por Paulo Ayres
Há certas ficções em que um momento especial do desenvolvimento narrativo é quando a personagem — geralmente a protagonista — pronuncia o nome da obra, afirmando um significado específico de uma expressão que pode ter mais de um sentido. Exemplos disso na arte audiovisual estão em dois folhetins: quando o título é falado por James Bond (Pierce Brosnan) em The World Is Not Enough (1999) e quando o título é falado por Leona Senna (Clara Moneke) em Dona de Mim (2025). O nome do filme Mãe Só Há Uma não é dito diretamente numa frase do enredo, mas o drama de Anna Muylaert cria uma metalinguagem genial com essa questão, essência da obra, ao colocar Dani Nefussi para interpretar as duas mães de Pierre/Felipe (Naomi Nero). A atriz se desdobra como o arquétipo da figura materna em duas identidades distintas, mas que compartilham essa determinação com o indivíduo singular que foi roubado na maternidade.
Inspirado livremente no caso real do garoto Pedrinho, Mãe Só Há Uma tem esse centro gravitacional no dilema identitário de Pierre/Felipe, mas distribui o tema pelas pessoas ao redor. Como grande tragédia que é, o filme faz isso sutilmente, sem afobação e sem vilanização de qualquer um dos lados. Para começo de conversa, Pierre/Felipe já demonstra uma oscilação e curiosidade quanto a sua imagem e autoimagem. Além de ser um adolescente bissexual e poliamoroso, sente atração em usar artigos (considerados) de mulher, como batom, lingerie e vestido. Muylaert encontra o assunto da duplicidade e reflete várias camadas duplas existentes na sociedade moderna. O caso peculiar do descobrimento do roubo de filhos gera uma cisão familiar em três núcleos — a irmãzinha coadjuvante, embora não esteja no foco, consegue o direito de apresentar outro choque na trama ao ir embora com outra família, pois também foi levada por Aracy, que foi presa.
O teste de DNA determina quem são os pais biológicos. Pronto. Nesse sentido, a figura da assistente social procura mediar, na medida do possível, a reorganização e a adaptação. Felicidade e tristeza. Carinho e revolta. Esses pares contraditórios deixam a pequena casa de um bairro proletário e acompanham Pierre/Felipe até seu novo lar numa casa abastada de condomínio. O olhar encantado de Glória encarando o filho, desaparecido há dezessete anos, tem algo de amoroso e assustador ao mesmo tempo. Muylaert a filma com proximidade, vigia essa vigilante, mostrando o seu cuidado e medo de perder novamente o filho. Já Matheus Nachtergaele tem um dos papéis mais insólitos da carreira. Chama a atenção como aquele senhor, meio mauricinho, tenta agradar o filho e celebrar o acontecimento, mas também fica puto em certos momentos de rebeldia do jovem. A tensão não tem uma resolução definitiva, mas o belo plano final de aproximação dos irmãos indica uma dose de resistência afetiva no caminho das atribulações que vieram e que ainda virão. A terapia do abraço não resolve as questões familiares e da sociedade em geral, mas simboliza algum equilíbrio psíquico possível. Por falar no caçula, ele tem o direito de uma subtrama própria. O drama realista apresenta uma bela ideia de acompanhar esse piá na ansiosa cena de encontro familiar no restaurante. Ele lá fora, falando ao celular, tentando não ser rejeitado por uma menina da escola. Depois ele entra e vai até à mesa onde estão todos. Com isso, fica indicado também como cada um ali tem seus próprios problemas e que a entrada de um novo membro familiar não é o centro do mundo — apesar de que, por ser uma obra ficcional, Pierre/Felipe está no papel de condutor narrativo e tema principal.
Xodó de muita gente, Que Horas Ela Volta? (2015) não consegue essa dialética artística bem trabalhada. O filme anterior de Muylaert também mistura os assuntos de contradições de classes e familiares, mas, enquanto drama edificante, amplia uma separação binária e, por fim, familista. O discurso revoltado de Pierre/Felipe, com vestido, até se aproxima de uma lição de moral, mas logo se recolhe na impotência individual diante da complexidade dos fatos que mudaram sua vida bruscamente. Mãe Só Há Uma, ironicamente, deixa o título em sentido aberto.
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