quinta-feira, 19 de junho de 2025

Herança realista

Malu

(tragédia,
BRA, 2024)
de Pedro Freire.
 
 

por Paulo Ayres
 
Quando se fala em família nuclear a imagem mental, enquanto conceito, tende a fixar não só aquela bastante reproduzida de papai, mamãe e filhinhos, como também congela o entendimento dessa categoria. Com um leve esforço de raciocínio, possibilitado pela maior abertura de costumes em boa parte do mundo, nos damos conta que uma família também pode ser dois pais, duas mães, um trisal, a avó e os netos, uma república estudantil com laços profundos etc. Ademais, mesmo naquele tipo de núcleo com envolvimento sanguíneo ou puramente jurídico, as coisas não são estáticas. Parentes são ramificações no espaço e no tempo, e, num mesmo lar, pode-se abrigar gerações distintas, geralmente de três camadas. O grande mérito de Malu é se concentrar nesse desenvolvimento histórico de microcosmo, havendo três mulheres na contradição de, no mesmo movimento, afastar-se e se aproximar. Contradição de órbita elíptica.
 
Na sátira de Tim Burton, Batman Returns (1992), os arquétipos trabalhados são simbolizados por três animais: morcego, gata e pinguim. No drama de Pedro Freire, as figuras são tipos diretos, sem rodeios, de conhecimento cotidiano generalizado: avó, mãe e filha. Elas estão numa determinada situação singular, mas essa singularidade revela a particularidade da nossa época histórica. Certos comentadores da obra, provavelmente, isolam a “disfuncionalidade” e os diagnósticos médicos e psiquiátricos, tratando como um desvio anêmico na sociabilidade. Nesse movimento, não se capta a particularidade histórica e não se nota bem a matéria social presente na tragédia. Além dos temas concretos de cuidado parental, violência doméstica e direito de herança, há uma vivacidade em Malu que equilibra os aspectos melancólico e debochado.
 
Livremente inspirado na vida da mãe do diretor, Malu Rocha, a personagem Malu (Yara de Novaes) é uma atriz desempregada de cinquenta anos que tem como patrimônio uma humilde residência num bairro proletário, conseguida com a renda dos tempos de espetáculo. A casa tem aspecto de “esboço”, cheia de rebocos e uma lama no quintal que possui tábuas de passarelas. Nos típicos puxadinhos de pobre estão um amigo artista (Átila Bee), com quem fuma maconha, e sua mãe, Dona Lili (Juliana Carneiro da Cunha), que traz uma imagem de gentileza e preconceito. A filha Joana (Carol Duarte) também segue a carreira de atriz e é a ponta mais nova dessa ligação familiar com amor e ressentimentos.
 
Freire filma a maior parte das sequências nesses poucos metros quadrados e o drama realista consegue uma alternância de acontecimentos bem ilustrativos, como órbitas de atração e repulsão.
 
Malu, ex-hippie e desbocada é o elo geracional ali e se recusa a aceitar o cancelamento dos planos de vida, embora pareça estar atolada no local. Fala bastante e vive repetindo os planejamentos de reformas e a criação de um empreendimento. Nas indicações de mágoas do passado, a mulher vive contando que foi internada em uma instituição psiquiátrica pela mãe por causa do estilo de vida boêmio. A idosa reservada, por sua vez, guarda seus problemas para si, mas deixa escapar que a irmã e ela eram abusadas sexualmente pelo pai na zona rural. Por mais que Joana represente uma posição mais equilibrada, a moça também revela alguma amargura em relação a criação que teve, numa discussão de mãe e filha que Freire encena na sala escura. Com o tempo, as duas pontas de gerações deixam a casa e, mesmo de dia, um aspecto de desolação aparece nos belos planos com a porta ensolarada e o quintal de “construção parada”. A fotografia do filme é de Mauro Pinheiro Jr.
 
Resgatando a mãe do possível determinismo geográfico e psicológico do enredo, a filha retorna como o horizonte aberto na medida do possível. Mesmo que Malu, debilitada psiquicamente, tenha lapsos de memória, está dentro de uma condução firme e consciente das tristezas e alegrias. 
  
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