segunda-feira, 7 de julho de 2025

Ritos de passagem

 Domingo à Noite 

(tragédia, 
BRA, 2022)
de André Bushatsky. 

 

por Paulo Ayres

A expressão "domingo à noite", que dá nome ao filme de André Bushatsky, permite uma digressão cultural sobre o que isso remete em termos de imagens e sons. Junto com a chamada síndrome do domingo à noite - reconhecida desde o reflexo cotidiano no senso comum até o reflexo científico -, é possível detectar certa iconografia e áudios correspondentes. No caso do Brasil, até se pensou em "síndrome do Fantástico", devido ao horário do programa televisivo da maior emissora. Gols da rodada, Sai de Baixo (1996-2002), algum filme do Steven Seagal, pegadinhas do João Kléber e do Silvio Santos. As do SBT usam o termo "câmera escondida"; e, por falar no canal, nos anos 1990, uma aparição sombria de uma bênção de Jesus - sinistra para uma criança - indicava que um fim de semana estava se encerrando e uma nova semana começando. Esse tipo de escuridão ou intervalo ilustra um ciclo em espiral da vida cotidiana.

O nome do filme, Domingo à Noite, casa com o enredo, que fala de um processo gradual de demência. É como se o casal de idosos tivesse uma ampliação constante e aleatória daquela sensação melancólica e ansiosa, com imagens e sons que indicam uma pausa de recomeço. Margot (Marieta Severo), atriz de grande fama, recebe o diagnóstico de mal de Alzheimer e, além de não conseguir cumprir o contrato e realizar uma cena final de ficção, se vê limitada de ser o ponto de apoio do marido, Antônio (Zécarlos Machado), um escritor premiado que já está num estágio avançado da doença. Os dois filhos do casal, Francine (Natália Lage) e Guto (Johnnas Oliva), apresentam-se como um novo meio de suporte estrutural. Contraditoriamente, a saúde mental deles não esconde que é um par, não só com problemas próprios, mas em menoridade perto do dinheiro e do reconhecimento dos pais.

É uma sequência forte em transmitir dor e falta de rumo quando Antônio ouve que uma das filhas morreu e, depois, entra nas ondas do mar para ser resgatado. No entanto, a tragédia audiovisual predomina o tom solene e chique em sintonia com Margot, procurando se manter firme e recusando a ideia de passar os últimos tempos numa casa de repouso.

A personagem não consegue interpretar um último trabalho e transfere essa limitação ritualizando sua vida real como uma sequência cerimonial em danças e toques íntimos. O objetivo é sério em manter porções de sua identidade individual e a do companheiro. Independente se a maneira como ela realiza e a decisão de fica ali é um capricho ou não, Bushatsky deveria se colocar com certa distância dessa décadence avec élégance. A trilha sonora incidental, usada em demasia, é o indicativo maior que o tom de queda honrada está sendo construído gradualmente.

De certa forma, o drama edificante aponta que Margot conseguiu sua performance derradeira, um rito de passagem domiciliar. Domingo à Noite alcança, por vezes, o aprofundamento no dilema da perda relativa de si mesmo e do outro da convivência, mas sofre da síndrome da labuta romantizada.

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