Revendo Boogie Nights após décadas de seu lançamento e depois que o próprio Paul Thomas Anderson consolidou uma filmografia diversificada, é possível notar como o filme é especial e que, mesmo com deslizes mínimos, cumpre aquilo que a proposta ousada chama para si em responsabilidade. O drama se apresenta como uma síntese histórica que calibra a lente para um ambiente determinado de entretenimento tão lucrativo quanto relativamente marginalizado. Está ali um retrato que se equilibra em críticas pontuais, mas sem generalizar para uma demonização ou um passamento de pano. Pelo contrário, Boogie Nights é aquele filme sobre os bastidores da produção audiovisual pornográfica que se compadece com seus dilemas e debocha das suas contradições, sem se colocar num ar superior. Há, ademais, uma aproximação afetiva na medida adequada, sem cair na pieguice e nem atropelar as situações insólitas que um espaço tão díspar oferece.
Para entender melhor a façanha de P. T. Anderson, a análise da dramédia histórica pode ser dividida em quatro termos que começam com a letra “F” de “fuck”. Os quatro termos são: festa movimentada, folhetim pornô, fita cassete e família nuclear.
Festas movimentadas
Anderson, então um jovem cineasta com vinte e sete anos, exibe um domínio maduro de planos-sequências em que a câmera transita por lugares com vários atores em marcação e diálogos desconectados. Em parte dos travellings, acontece alguma confraternização cheia de gente, tendo a sequência da piscina, com a imagem mergulhando junto com uma moça, como a assinatura de autoria do americano. Com uma trilha sonora lotada de canções retrô, é o momento em que “Spill the Wine”, de Eric Burdon and War, sobe o tom. Se antes, na mesma década de 1990, Quentin Tarantino abriu o caminho de uma cinefilia e cinematografia, nos Estados Unidos, alimentando-se de modo referencial de filme tachados, preconceituosamente, de “vagabundos”, Anderson segue as dramédias Reservoir Dogs (1992) e Pulp Fiction (1994), mas de um modo diferente: além de ter como conteúdo o cinema pornográfico, o mais marginal dos marginais, sua dramédia se interessa pela referência direta, no sentido de como esse tipo de arte experimentou uma ascensão cinematográfica seguida de uma banalização artística.
Ainda que Boogie Nights tenha o centro de protagonismo em Eddie Adams (Mark Wahlberg), a ramificação do roteiro é de um painel múltiplo. Eddie é um jovem de dezessete anos, com um pênis enorme, que é transformado em astro de filmes adultos com o nome artístico de Dirk Diggler. O ano é 1977 e seu olhar de descoberta realiza uma apresentação, conjunta com o espectador, da dinâmica daquele negócio na Califórnia e de um conjunto de personagens que também possuem suas subtramas.
A dramédia seguinte de Anderson, Magnolia (1999), também é uma montagem paralela formada por várias histórias. Entretanto, diferente de Boogie Nights, Magnolia é um drama edificante em processo de se fechar num conjunto de conciliações emotivas em diálogos.
Folhetins pornôs
Um filme sobre os bastidores do mercado pornográfico tem um material que, obviamente, chama a atenção. É um tipo de submundo que, por mais que a racionalidade formal do capitalismo tardio transforme em uma mercadoria qualquer, preserva um componente espantoso por lidar com relações afetivo-sexuais de maneira profissional e coisificada. Há um pouco de distanciamento blasé no cineasta ficcional Jack Horner (Burt Reynolds), mas sua excentricidade artística indica uma sinceridade de elevar o patamar estético desse tipo de tesão ficcional, deparando-se com empecilhos que só o investimento e a criatividade poderiam contornar em parte. A garota Rollergirl (Heather Graham), que nunca tira os patins, parece uma suposta ensaiadora de novo elenco, e a primeira cena, de fato, de Dirk Diggler é com a veterana Amber Waves (Julianne Moore). É uma encenação de sexo explícito (não real) em que a estreia do garoto demonstra mais o constrangimento disfarçado. Não se mostra a penetração e a ejaculação — apenas mencionadas —, mas o jogo de campos visuais de Anderson destaca a equipe de filmagem contemplando o ato, enquanto a câmera está ligada e a película registra a cena, com apenas um corte para trocar o rolo de filme.
Nos breves momentos de filmes dentro do filme, Boogie Nights alterna de forma eficaz a encenação. Esses filmes pornôs são folhetins. Aliás, na verdade, todos, ou quase todos, os vídeos pornográficos com historinhas são sátiras. Quando ocorre exceções, com sexo explícito em encenações dramáticas, algumas pessoas até tentam disfarçar e falar algo como se tratasse de um momento “erótico” real num filme “de arte”. Em Boogie Nights, a encenação folhetinesca de “Brock Landers” e outros produtos não é tanto um deboche de menosprezo, mas uma constatação de limitações técnicas e orçamentárias, que só poderiam ser superadas com bastante criatividade e a afirmação da tendência realista. Como não vemos os filmes inteiros, não é possível saber se alguns exemplares alcançaram um patamar satírico de alto nível.
Fitas cassetes
Começando em 1977 e terminando em 1984, o enredo do drama realista expõe um período de transição da indústria pornográfica, refletido no apogeu e na decadência de Dirk Diggler. Primeiramente, algo que ocorre em vários negócios e nesse ambiente pode ser potencializado numa rapidez assombrosa: o preconceito etário. Mesmo continuando um rapaz bem novo, Dirk nota certo deslocamento quando um menino mais jovem é inserido nesse meio. A cena de ciumeira, por sua vez, compõe um conjunto de transformações que marcará profundamente esse segmento artístico. Jack Horner é avisado que o mercado de videocassetes, e suas fitas de vídeo, é uma tendência decisiva que vai determinar a pornografia audiovisual. Acreditando que esse tipo de filme merece tanto reconhecimento quanto o cinema dito tradicional, o velho cineasta recusa, de início, o processo de transição.
Famílias nucleares
Se Anderson criou uma noite de pesadelo com Horner e Rollergirl numa limusine, elevando o ruído de fundo na fronteira do tríler, o tom descontraído retorna. No meio de desgraças maiores do acaso, Buck Swope (Don Cheadle) encontra o financiamento para abrir sua loja e viver com sua esposa grávida, também uma ex-atriz pornô. Boogie Nights abre caminhos nas histórias cruzadas e, sem deixar de espelhar as contradições, expande um horizonte de vivências. A canção assobiável dos Beach Boys, “God Only Knows”, pode sugerir, na superfície, um mero final feliz, mas o travelling de desfecho é mais complexo. Amber Waves perdeu a guarda do filho por envolvimento com drogas e por trabalhar com pornografia. Entre os laços afetivos e laborais, é evidente que ela vê em Dirk um substituto para preencher esse sofrimento. No mesmo movimento, Jack Horner, além de cineasta, é um “paizão” para Dirk e Rollergirl. Nada disso no sentido incestuoso, sanguíneo e formal. É apenas uma das camadas simbólicas que se sobrepõe nesse núcleo duro, que possui outras conexões profissionais e amistosas numa rede maior.
Assim como a dramédia sul-coreana Gisaengchung (2019), de Bong Joon-ho, é um transbordamento da ideologia familista, fazendo três núcleos familiares disputarem a presença numa mansão, a dramédia estadunidense ironiza um familismo incomum.
= = =
Lista de historical dramedy no subgênero crime fiction:
- Máfia realista
- Imitação da vida
- Digressão realista
- Espetáculo realista
- Paciência realista
- Coito coisificado
- Favela turística
- Cela antidialética
- Vigilância comunitária
- Cidade naturalista
- Tempero naturalista
- Juízo posterior
- Delírio de grandeza
- Filtro amarelo
- Blitz familista
- Arquitetura realista
= = =
Nenhum comentário:
Postar um comentário