por Paulo Ayres
É difícil exagerar o impacto de Cidade de Deus enquanto marco do cinema nacional e que, independente da avaliação sobre como ocorre seu reflexo estético, trata-se de um divisor de águas na sétima arte feita no Brasil e na América Latina. Para não fazer injustiça com clássicos do passado mais distante — alguns desses também com considerável repercussão internacional —, pode-se afirmar, no mínimo, que Cidade de Deus é o filme brasileiro mais célebre após a chamada Retomada e é, também, o paradigma iconográfico dessa nova fase no novo século. É até possível vê-lo sendo citado quando algum indivíduo estrangeiro ou site especifico de fora cria sua lista de melhores filmes da história. Enfim, essa dramédia criminal não apenas obteve quatro indicações ao Oscar, conseguiu certa aura de reverência inédita no grau de adesão para uma obra brasileira.
Tanto capricho técnico e a montagem envolvente num gingado narrativo, entretanto, não impedem que as limitações de Cidade de Deus saltem às vistas. Nesse sentido, o apuro estético tão chamativo até explicita certos elementos do conteúdo como um fluxo binário. E isso vai além de certos diálogos “datilografados” sobre a vida de malandro, por exemplo, assumindo decididamente a estrutura de dramatização maniqueísta. Por mais nuances que apareçam no panorama comunitário da Cidade de Deus, Buscapé (Alexandre Rodrigues), o adolescente narrador, é do “bem”, e Zé Pequeno (Leandro Firmino) se reduz a um vilão homicida, às vezes demonstrando um sadismo. A direção primorosa de “não atores” ou “novos atores”, comandada pela codiretora Kátia Lund, injeta vida nas performances, mas essa vitalidade se achata de forma unilateral em pontos específicos. Só para citar outro filme brasileiro do mesmo ano, Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, é um drama realista sobre a malandragem; enquanto isso, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, é a malandragem abordada através de um drama edificante.
São manobras pontuais dentro do painel de Cidade de Deus, mas, em duas passagens, a moralização é tão constrangedora que a ficção histórica recorre à religiosidade como ritos de passagem com uma carga de êxtase. Alicate (Jefechander Suplino) desce de uma árvore e decide largar a vida de crime para caminhar nos passos do cristianismo. Dadinho assume o nome de Zé Pequeno como se um pai de santo fosse um guia infernal. E por mais que a trilha sonora destaque, entre outras coisas, o baile funk clássico (música estadunidense), a canção que sintetiza tudo é “O Caminho do Bem”, do Tim Maia da fase mística. Essa aí é a mensagem da dramédia.
Buscapé, tal como uma espécie de guia turístico, nos conta a história da Cidade de Deus, por meio da seleção de certas figuras, como o Trio Ternura, o Paraíba, o dono da boca dos apês, o Mané Galinha... O olhar do garoto emerge como uma mediação geográfica e, com o tempo, transparece certo filtro de esclarecimento exterior. Ele interage com a classe média jornalística e se torna praticamente um infiltrado ali. A favela vertiginosa e resplandecente, cheia de violência, se curva, junto com a narrativa em si, para que nosso jovem herói inaugure suas trajetórias afetivo-sexual e profissional. Felizmente, essa centralidade não se escancara, pois o filme de Meirelles faz questão de indicar o caminho paralelo do grupo de crianças delinquentes, armadas e sem rumo.
Seguindo os passos dinâmicos da dramédia norte-americana Goodfellas (1990), de Martin Scorsese, a narração em off de Cidade de Deus se interessa na rápida descrição da estrutura do narcotráfico como um movimento em rede com postos de trabalho material e de serviços. Contudo, Buscapé, é somente um observador próximo do lúmpen-proletariado do mercado de drogas. O giro de 360° da imagem em torno do personagem o salienta como um corpo estranho encurralado — tal como a galinha escapando da sua sina —, mas também cria o efeito da fotografia de César Charlone, que colore a geografia humana da Cidade de Deus em dois tons de tempo: a paisagem de cor de tijolo com chão de terra dos anos sessenta e, como um segundo ato, a concentração meio azulada de asfalto dos anos setenta e início dos oitenta. Nesse tipo de horizonte audiovisual, que une duas temporalidades, é que o filme de Meirelles se engrandece e somos absorvidos por aquela vida cotidiana, sem necessitar do guia que “venceu na vida” nos conduzindo com palavras de mapeamento.
= = =
Lista de historical dramedy no subgênero crime fiction:
= = =
Nenhum comentário:
Postar um comentário