(dramédia,
ARG/ESP/ITA, 2002)
de Marcelo Piñeyro.
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por Marcelo Hessel
Omelete/2003
Localizada no extremo Leste da Rússia, a península de Kamchatka é uma região gelada, de dificílimo povoamento. Ali se encontra uma das mais instáveis cadeias magmáticas da Terra, com intensos tremores e mais de cem vulcões — 29 potencialmente ativos e alguns em franca erupção.
Curioso, não? Pois Kamchatka representou também, durante a Guerra Fria, um ponto militar estratégico. Mais próxima geograficamente dos EUA do que de Moscou, foi mantida como zona militarizada, proibida a turistas, até o esfacelamento da ex-União Soviética, em 1991.
Esse último fato fez com que Kamchatka fosse incluída em algumas versões de “War”, o clássico jogo de tabuleiro. Eis uma das lições que ensina a produção argentina Kamchatka, do diretor Marcelo Piñeyro: a península em “War” deve ser um lugar de resistência, de esperança, um lugar do qual todos devem se lembrar, sempre que estiverem sozinhos ou em desvantagem.
A lição — o espectador descobrirá — é dada por um pai (Ricardo Darín) a seu filho mais velho (Matías Del Pozo), de onze anos. Nos dias que sucedem o golpe militar de 1976, a família, constituída por oponentes do novo regime, precisa abandonar a sua casa, os seus nomes civis, as suas rotinas. Fogem para um sítio onde, na companhia da mãe (Cecília Roth) e do filho caçula, precisam agora viver em alerta.
Seguindo uma tendência atual do cinema “inteligente”, Kamchatka começa com o desfecho, constrói toda a narrativa numa espécie de flashback, e termina por explicar o sentido real daquele final pré-revelado. Mas, aqui, o artifício não estraga prazeres antes da hora, e sim dá uma dica do tom encontrado ao longo do filme. Não se trata, pois, de mais uma obra a respeito de guerrilhas e ditaduras, com heróis, mortes e explosões, mas de um retrato sensível e humano, em que a política serve apenas de pano-de-fundo.
O diretor Piñeyro, do polêmico Plata Quemada (2000), já havia tratado do assunto, quando bancou a produção de La Historia Oficial (1985), Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1986. Mas, na época, apenas dois anos após o fim do regime militar, o tema se mostrava urgentemente dramático, pulsante. Hoje, quando Piñeyro decide assumir a autoria do novo projeto, o tema pede uma abordagem mais delicada. O próprio diretor reconhece: “Kamchatka fala de vínculos familiares, de legados deixados, ou não (...) Fala de amor e dos afetos em tempos de horror”.
Então, como contar uma história cruel de maneira contrária ao choque e ao sensacionalismo? O grande trunfo de Kamchatka é colocar o cativante Matías como narrador. A princípio, o menino não entende a realidade que o cerca, e isso abre espaço para uma série de metáforas espirituosas — e de situações aparentemente inocentes, mas tão sinceras quanto enriquecedoras.
O filho, por exemplo, gosta de assistir aos filmes B norte-americanos, repletos de naves alienígenas — logo, os exércitos são vistos como invasores espaciais. E quando o pai sugere que a toda família troque de nomes, o menino logo adota Harry, em homenagem ao seu ídolo, Houdini (1874–1926), exatamente o mestre das fugas e dos esconderijos.
Em certos momentos, principalmente no miolo do filme, a tensão perde compasso — como se o perigo parasse de rondar o sítio. Daí, entra o talento do elenco, que garante sustentação ao drama. O impecável Héctor Auterio aparece no papel do avô, e refaz com Darín a dupla premiada de El Hijo de la Novia (de Juan José Campanella, 2001). Este, por sua vez, volta a atuar com o jovem Tomás Fonzi, o caçula Federico de Nueve Reinas (de Fabián Bielinsky, 2000). Por fim, Cecília Roth, a protagonista de Todo Sobre Mi Madre (de Pedro Almodóvar, 1999), exibe o talento de costume.
No geral, Kamchatka não tem o mesmo apelo comercial dos filmes citados. Passa por um processo muito mais introspectivo, discreto. Mas isso não o desmerece, muito pelo contrário.
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Lista de historical dramedy no subgênero political fiction:
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