sábado, 19 de julho de 2025

Militarização realista

 Full Metal Jacket

(dramédia,
USA/UK, 1987)
de Stanley Kubrick.
  

 
por Paulo Ayres

Entre as dimensões que Full Metal Jacket possibilita como espelhamentos, chama a atenção a questão do complexo militar no interior da reprodução social. O filme pode ser conhecido como a aguardada visão de Stanley Kubrick sobre a Guerra do Vietnã, mas a primeira parte, em terras americanas, tem um impacto maior. Em primeiro lugar, o fato óbvio: filmes de guerra, e dessa guerra em particular, já criaram certos códigos reconhecíveis como gênero temático. O campo de batalha como desafio cinematográfico de recriação verossímil. Se “alistar” enquanto espectador audiovisual numa experiência estética de aproximação desse ambiente e o clímax do enfrentamento. Nos Estados Unidos, já havia exemplares tentando ser “o” drama sintetizador sobre essa invasão imperialista, como Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, e Platoon (1986), de Oliver Stone. Kubrick, sete anos após The Shining (1980), lança uma obra que acompanha o processo gradual de militarização: a cena inicial com os jovens civis raspando a cabeça é como o “batismo” dessa dinâmica, rito de passagem.

Trata-se, no caso, da militarização de pessoas para ocupar essa função da classe servidora. O processo de militarização, por sua vez, também pode ser em relação a outros espaços sociais e, quando isso ocorre, tende a gerar debates sobre as consequências dessa ampliação. Como exemplos, a proposta brasileira de militarização de algumas escolas e a proposta rejeitada de militarização dos sindicatos feita por Trótski na União Soviética. O objeto militarizado em Full Metal Jacket é aquele que ocorre ao entrar na instituição e a formação de soldados. E, no contexto específico do final da década de 1960, com um dos momentos em que esquentou a chamada Guerra Fria.
 
Componente essencial da sociedade de classes, as forças armadas são um aparelho de segurança que tende a estar voltado para o exterior, recurso de soberania nacional. Kubrick se interessa pela forma cotidiana da disciplina militar. O interesse é na medida em que essa reeducação estatal coisifica na criação de armas vivas e humanas. As instruções gritadas pelo Sargento L. Hartmann prezam pela ordenação severa, preparação física e psicológica a base de pressão e insultos. Se o drama realista possui originalidade destacável é, em parte, graças a performance de Lee Ermey como esse mestre de cerimônias. Encarando um corredor humano em frente aos seus leitos, ou olhando furioso diretamente para a câmera subjetiva, Hartmann é a figura que leva a uniformização bélica ao seu limite demonstrativo. Até mesmo em castigos, ofensas gratuitas e comentários sobre religiosidade, a força disciplinar mantém a postura firme de adestramento. Ademais, certas práticas, como quando os recrutas fazem o juramento com os fuzis em punhos, acentua a carga dramediesca que o cineasta optou. Superproduções dramáticas sobre guerras, em campos de batalha e bastidores, geralmente se apresentam no gênero do tríler. Com o material que tinha, Kubrick dá forma a uma dramédia que, além do treinamento alucinado, recorre, depois, a uma trilha sonora de canções agitadas do período. É algo em sintonia com o Soldado Joker (Matthew Modine), futuro correspondente de guerra que ironiza a si mesmo na dualidade de usar um símbolo da paz, em broche, e ter “Born to Kill" escrito no capacete.
 
Antes da marcha final com a canção do Mickey Mouse, há um clímax mais tenso envolvendo uma jovem atiradora de tocaia. No entanto, nada que desfaça a modelagem de protosátira que predomina. A equipe que realiza os registros jornalísticos, dentro do enredo, possibilita que o contraste irônico reine nos depoimentos. Os soldados norte-americanos variam nas respostas sobre suas visões sobre a guerra. Uma referência que se nota é que, entre os comentários, há a citação dos nomes de John Wayne, astro de filmes de faroeste, e do General Custer, figura real que guerreou contra indígenas. Ou seja, duas resistências anticoloniais são comparadas. Além disso, ao fazer duas sequências com prostitutas vietnamitas, a dramédia política também mostra interações subservientes que mendigam dólares para sobreviver.
 
Contudo, é na primeira parte, com o Recruta Gomer Pyle (Vincent D'Onofrio), que Full Metal Jacket transforma esse servidor em símbolo geral da rejeição em grupo. Acima do peso e lento, Pyle se atrasa em relação aos demais e, com o passar das semanas, é colocado no posição punitiva de estorvo para seus companheiros. Emerge um poço de ressentimento que não chega a ir ao Vietnã. Em seguida, um fundo preto surge após o banheiro da instalação militar de Parris Island. Elipse entre os dois tempos do filme. Por mais que o capricho detalhado prossiga na reconstituição cenográfica feita pela equipe de Kubrick, a passagem soa como ocultação de etapas. Não compromete o realismo artístico, mas pequenos pontos, como esse, são o motivo pelo qual Full Metal Jacket não está entre as obras máximas do diretor. Outro aspecto é como o olhar narrativo se aproxima de um conjunto de fuzileiros pelo clima de descontração e na superfície dos apelidos militares. Ainda assim, há um painel complexo no descompasso entre a uniformização dos soldados e a variedade humana.
 
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