(folhetim,
USA, 1998)
de Peter Weir.
USA, 1998)
de Peter Weir.
Afinal, o que é o The Truman Show? Um genial retrato sobre a sociedade consumista moderna ou uma picaretagem hollywoodiana onde uma clássica estória de um herói inferiorizado contra as forças do destino se disfarça de profunda reflexão? Como na maioria das vezes quando se tenta radicalizar de tal forma uma questão, nem um nem outro. The Truman Show é sim um filme inteligentíssimo e premeditado, que segue sim várias das regras do jogo hollywoodiano com maior ou menor sucesso. Acima de tudo, é um filme que, ao refletir sobre a sociedade atual, acaba refletindo muito mais ainda sobre as possibilidades do cinema como meio popular de expressão de ideias.
A grande prova de que havia algo de especial neste filme, para mim, se deu na saída da sessão da primeira vez que fui vê-lo. Sala de shopping à noite. Sessão cheia. As pessoas pareciam não entender o que acabavam de ver. Algumas genuinamente gostaram. Outras se sentiram traídas. Outras ainda afirmavam ter gostado, mas era um filme muito estranho, diziam. Fiquei contentíssimo com estas respostas pois percebi (e vejam que nem tinha gostado tanto assim) que Peter Weir havia conseguido algo pouco visto no cinema atual: incomodado a plateia que ia em busca de um grande sucesso cômico. E isso é uma coisa linda. Resolvi que precisava rever o filme, desta vez sem público (à tarde, dia de semana, semanas depois da estreia) para entender o que incomodava tanto aquela plateia. Me despi das minhas análises cinematograficamente enriquecidas de um frequentador do Estação, joguei fora as horas de Godard, Glauber, Bresson e Rossellini. Procurei sentar e ver aquele filme com os olhos daquele que tem hoje de 15 a 30 anos e que só viu na vida filmes de Hollywood. Adivinhe quem é este? Eu diria que 75% do público que vai aos cinemas. E me incomodei também. E vi que Peter Weir fez sim um filme rigoroso, quase experimental. Não para mim, e para você que está lendo este texto. Mas para quem foi ao cinema vê-lo em massa. E esta para mim é a qualidade indiscutível deste filme: para o público hollywoodiano de hoje (que é muito, mas muito mais emburrecido que o de 30, 20 ou até 10 anos atrás), para as massas, o filme é um incômodo. Um incômodo que eles até tentam apreciar, mas que vai de alguma forma mudar a sua percepção. Veja, não é mais possível se achar hoje que o público vai se transformar de repente como se sonhou no Cinema Novo. Jogue um Deus e o Diabo na Terra do Sol [1964] nas telas dos shoppings e o que vai acontecer é que estes nunca mais voltam para ver um filme brasileiro. Jogue um Hal Hartley e o público muda-se para sempre para o Cinemark.
Peter Weir mostrou para mim um caminho. Um caminho triste e duro sim, mas um caminho realista. Para fazer deste público sensível, temos que jogar no campo dele. Temos que oferecer um herói, temos que oferecer um ator conhecido, temos que oferecer uma saga, um ritmo. Pois nosso inimigo é uma cultura disseminada pela TV, a imagem rápida, o descartável, a falta de atenção. Não devemos então ser experimentais, não há espaço para Godard e Bressane? Há sim, com seu público de 10 a 15 mil. Mas porque não atacar a psique do público de dois milhões de espectadores também. E mais, o público muito maior ainda que verá The Truman Show quando exibido na TV? Porque desistirmos de dialogar com 85% da população em nome de um purismo para meia dúzia? Não dá mais para idealizar e pedir que o público seja mais inteligente e político esperando que isso aconteça sozinho. Um The Truman Show também não vai fazê-lo, mas vários, todos os anos, talvez. E isso só acontece se o sucesso comercial andar junto com a exposição de ideias.
Não se enganem, Jim Carrey não é bobo. Assistam The Cable Guy [1996] e vejam um filme dos mais deprimentes e darks do cinema moderno. Tanto que esse nem conseguiu ser sucesso de público. Era, sim, radical demais. Nos anos 60 e 70 talvez não. Hoje é. Carrey tentou de novo e conseguiu, com The Truman Show, onde há o herói (em The Cable Guy não havia), há a saga e a emoção barata, mas há também a coragem de ousar. O filme é brilhante neste sentido, e representativo mais do que todos de 98 porque mostra o que é o cinema alternativo no panorama mundial hoje: algo que custa e lucra milhões de dólares. Mas, algo que traz uma semente da estranheza para dentro da casa da comodidade. The Truman Show é o cinema inteligente o suficiente para usar do mesmo repertório da estupidez reinante: você invadirá cada segundo da minha percepção com o vazio? Pois eu invadirei o teu domínio e plantarei uma semente de pensamento na sua estupidez.
E como é que o filme causa esta estranheza? De várias formas. Na sua primeira parte igualando o espectador a Truman. Fazendo o espectador estranhar a sua realidade como Truman faz. Usando de metáforas para um público que não as conhece. Mostra um personagem num mundo que parece tentar domá-lo, onde o rádio do carro o influencia diretamente a fazer coisas e a perceber o mundo de uma forma. Onde a propaganda serve só para forçar comportamentos (só que no caso o estranho para a plateia é que é ao contrário: ao invés do outdoor te fazer querer conhecer o Caribe, por exemplo, ele da mesma forma subliminar quer convencê-lo a não viajar). O público estranha aquilo tudo, como Truman estranha. A vida em Seahaven não parece só uma paródia das séries de TV, mas uma paródia da nossa vida. E o público percebe e pensa sobre isso. Ao mesmo tempo que estabelece simpatia com o “herói”, o que garante sua atenção na próxima hora e quarenta. Weir filma de ângulos estranhos, impondo uma estética anti-naturalista a um público que não sabe o que é isso. Mas o faz com a desculpa de que é um programa de TV, daí não chocando este público. Torna normal o estranho.
De repente joga cenas de um público que olha direto para a câmara, como quem assiste TV. A plateia do cinema (e isso eu não suponho, eu vi acontecer) se assusta. Porque estão eles sendo olhados pelos atores, e não o contrário? O que isso quer dizer? Então a estranheza se explica através da criação de uma maior. Tudo parecia estranho e dirigido para Truman porque era um programa de TV. Há uma mudança importante de simpatia do público neste momento. Agora nós torcemos para Truman, mas nossa identificação já não é com ele e sim com aqueles que representam o público espectador do programa. É o público na tela, olhando o público na sala, refletindo-o. Estas são as melhores cenas do filme.
Voltamos à trama, que evolui até o encontro do pai. Um momento de construída emoção, certo? Sim, mas Weir corta esta emoção do público assumindo esta construção. Há alguém dirigindo tudo: a trilha sonora chorosa, os enquadramentos, a emoção dos atores. É o filme hollywoodiano assumindo na frente do seu público o seu artificialismo, a sua construção. Se isso não é coragem na Hollywood dos anos 90, não sei o que é. Vejam bem, Weir interrompe a trama que ele mesmo criou e passa para um momento absolutamente (auto) reflexivo: a longa entrevista de Christof, o diretor do programa de TV, que revela o mecanismo do filme num todo. Ele fala da série mas o espectador é forçado a pensar em todas as séries, todos os filmes. Então é tudo construção? Weir estabelece a cada momento mais, uma relação quase brechtiana de não-emoção com uma plateia que quer emoção acima de tudo. De dissecação do processo do espectador, do processo do personagem, do processo do realizador. Christof defende seus métodos: “Aceitamos o mundo que nos apresentam”; “Truman prefere sua prisão”. Ele está metaforizando o nosso mundo. Mas será que o público vai longe assim na compreensão do filme? Weir responde com uma cena dos policiais que assistem à entrevista: eles não têm ideia do que significa aquilo. Eles, como o público no cinema, querem a volta de Truman. Então, vamos lá, vamos a saga do herói que quer fugir daquilo tudo. O filme volta ao seu registro hollywoodiano, a plateia vibra. Truman foge.
Truman toca o céu para descobrir sua falsidade, Truman foge pelo céu. Truman conversa com seu criador. “Não há verdade lá fora” diz Christof. E não há mesmo pois um personagem de TV só existe perante as câmeras. Por isso mesmo Weir não mostra Truman após a fuga, pois ele já não interessa mais ao espectador, ele saiu da TV. Não há encontro amoroso (acreditem, com uma direção menos conscienciosa haveria, não há adaptação ao mundo real, pois este não existe). Só existe Seahaven, e o público. Acabou a aventura, acabaram as duas horas de descerebrado entretenimento para as quais o público saiu de casa certo? Então porque aqueles dois policiais ainda estão na tela? Eles olham para nós, eles somos nós. “O que mais está passando?” pergunta um deles, trocando de canal. O público estranha, o que isso tem a ver com Truman, o “herói”? Nada, tem a ver conosco, pois o filme não é sobre Truman, mas sobre o público. O público que troca de canal pois cansou de Truman, Truman que chegou ao seu The End.
Me digam que o filme tem simbolismos baratos, eu concordarei. Me digam que o filme é piegas, eu assinarei embaixo. Me digam que o filme não vai fundo no que analisa, eu digo que é verdade. Mas não me digam que o filme não reflete o mundo hoje, o cinema hoje, acima de tudo o público hoje. E o faz de forma completamente consciente e proposital, diria que até afrontosa. Critiquem-no, mas pensem no público ao qual ele se destina, ao serviço que ele pode nos prestar. Eu, daqui, bato palmas para Peter Weir, palmas para Jim Carrey. Pois eles gastaram 50 milhões de dólares de Hollywood e ganharam 150 milhões de dólares do público médio americano enquanto criticavam os dois, mexiam com os dois, incomodavam os dois. Mesmo que eles não percebam agora, assim como não percebem a dessensibilização pregada em outros filmes. Subliminar é a chave.
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