quinta-feira, 26 de junho de 2025

Razão binária

 O Auto da Compadecida II

(farsa,
BRA, 2024)
de Flávia Lacerda
e Guel Arraes.
 

por Paulo Ayres 
 
Com O Auto da Compadecida II, Guel Arraes preenche a outra ponta do gênero satírico, pois a decisão da equipe de filmagem foi pela farsa. A única obra que destoava de sua filmografia com comédias era o folhetim Romance (2008). Agora, com o novo filme sobre Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele), uma outra boa experimentação ocorre. Elevados ao quadrado estão: a metralhadora verborrágica, a montagem com planos curtos, a marcação no quadro, caras e bocas, além de gesticulação de monte. Pode-se falar de um estilo “guelarraesiano”; embora, na nova sátira edificante, o nome da codiretora Flávia Lacerda apareça acima. A dupla filma um sertão com artificialidade de estúdio, construindo a Taperoá como uma maquete de computação gráfica. A igreja de arquitetura torta, como centro da cidadezinha e do enredo, deixa clara a intenção estética da ficção.

O roteiro utiliza outra peça teatral de Ariano Suassuna com inspiração complementar: A Farsa da Boa Preguiça (1960). Chicó vive como um guia de turismo religioso, falando sobre a morte e a ressurreição de João Grilo para os visitantes. Há a volta desse último, que viveu um tempo no Rio de Janeiro, capital federal, tendo o malandro Antônio do Amor (Luís Miranda) como parceiro de trabalho e trambique. Nesse ponto surge uma das dualidades apresentadas, pois Chicó se vê, momentaneamente, deslocado na amizade — que é o tema principal, com “Canção da América”, de Milton Nascimento, na versão de João Gomes. O carioca, mestre dos disfarces, colabora e depois vai embora. Movimento parecido com o de Clarabela (Fabiula Nascimento), realçada como uma atriz de engajamento idealista. Ela e Chicó têm algo que não se desenvolve, ficando como uma relação casual. Rosinha (Virginia Cavendish) retorna como caminhoneira e o amor inabalável se refaz. É essa postura binária de Chicó que está em sintonia com o que predomina no filme.

Mesmo se regenerando mais uma vez num julgamento no mundo dos mortos, o movimento de João Grilo é diferente diante das polarizações que encontra. Ele costura, como um agente duplo, auxílios a dois candidatos da disputa política da região. O Coronel Ernani (Humberto Martins) é um latifundiário tradicional e Arlindo (Eduardo Sterblitch) é um empresário com comércio e estação de rádio. Grilo tira alguns trocados de seus dois patrões em concorrência. Em seguida, a luta política em O Auto da Compadecida II é superada por um acordão no interior da classe capitalista.

No novo julgamento de João, ele também se vê como promotor e juiz, em papel triplo de Nachtergaele, simbolizando a contradição que está no interior dos indivíduos sociais. A compadecida, como compreensão externa, de perspectiva mais ampla, intervém como uma guia psicológica da subjetividade espelhada e em conflito. Desta vez, Nossa Senhora (Taís Araújo) é advogada e espírito motivacional com o discurso de esperança nas adversidades. Por mais que João Grilo vibre numa frequência quase indomável, a farsa física concretiza o tom de escapulida com lição de moral e fé. O malandro, de pequeno tamanho e grande raciocínio na vida cotidiana, é conduzido pela mocinha e petrificado na estátua. 
 
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