por Paulo Ayres
Filme francês sobre o México, Emilia Pérez apresenta a proposta de magia musical sobre o cartel de drogas. Ou melhor, essa questão do narcotráfico é um ponto de partida e um ponto de chegada no enredo. Rita Mora Castro (Zoe Saldaña) é a articuladora de todos os processos de transformação e seu olhar é o da narrativa. Contratada por livre e espontânea pressão, de risco de morte, por um chefão do crime organizado, a advogada se torna assistente de negociação de cirurgia de redesignação sexual. Juan “Manitas” Del Monte (Karla Sofía Gascón) deseja se tornar mulher e mudar radicalmente de vida. Emerge Emilia Pérez. A mulher transexual, redimida de seus “pecados”, torna-se uma burguesa filantrópica e quer seus filhos com ela, em sua mansão. A principal tensão que ocorre e é muito bem trabalhada pela dramédia, até certo ponto, é sua relação contraditória com a ex-esposa, Jessi (Selena Gomez), que não sabe da transição corporal e a vê como uma protetora desconhecida. Chegar nessa ideia criativa de convivência, que reflete aspectos familiares e comerciais da nossa época, é um mérito do filme de Jacques Audiard.
O ato musical mais destacado é, certamente, a performance de Saldaña entre as mesas de um evento beneficente, com Rita ironizando as máscaras da nata da sociedade. Ali, além de contradições banais, há ligação com diversos graus de crimes. Está evidente que a aparência social é o tema desenvolvido no filme em níveis distintos, como as identidades sexuais e as classes ideológicas.
É interessante como Rita é a figura intermediária, seja do processo de mudança com cirurgia, seja da treta das dondocas e até da negociação do sequestro. A dramédia mágica transita por diversos lugares — Bangkok, Tel Aviv, Londres... — e retorna a Cidade do México. Contudo, a fragmentação geográfica no “exterior” compõe um único ponto de transição na trama. É o terceiro incluído enquanto dialética narrativa. Cronologicamente também. A legenda informativa nos avisa que quatro anos se passaram. Certa performance coletiva de música, numa clínica de cirurgias plásticas e similares, fala em versos da canção, o percurso de homem para mulher, de mulher para homem. Emilia Pérez, quanto ao tema da transexualidade, se sai com desenvoltura, indicando, nas entrelinhas, como a reciprocidade de um par de categorias, em formas variadas, cria uma terceira categoria em continuidade e descontinuidade.
Drama edificante sobre mercados informais, Emilia Pérez demonstra ousadia e recua. Emilia Pérez, a personagem, termina santificada culturalmente por uma procissão de mexicanos católicos. Olhar preconceituoso de colonizador francês? Nada disso. Esse fato está na medida da ironia fina. O problema é que, antes disso, a narrativa eleva ao pedestal a Santa Emilia. Ela está com aquele 1% “vagabundo” (ou mais), mas justificada romanticamente pelo amor aos filhos e uma nova parceira, Epifanía Flores (Adriana Paz). E é aí que entramos na questão do clímax. Se fosse Jessi debaixo do pano em algum tipo de sequestro invertido ou, então, uma aliança secreta, a ousadia ficcional prosseguiria até o final, mesmo com mortes. Pelo tom dos acontecimentos, o que ocorre é o velho sacrifício redentor.
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