por Paulo Ayres
A premissa de Nightbitch é assaz interessante quando associa a vida de uma mulher a uma metáfora de dramédia mágica sobre uma metamorfose canina. As referências se dividem sublinhando aquilo que é chamado popularmente de idade da loba, não como somente o despertar da autoestima de meia-idade, mas mais como indignação do papel patriarcal de sobrecarga materna e de dona de casa. Aí está um ponto que, com paciência, a diretora Marielle Heller desenvolve bem, mostrando a impaciência da mãe feita por Amy Adams, acumulando ressentimento com o abandono da atividade artística para se concentrar no trabalho de cuidado na criação do filho. Ela chega a falar ao marido (Scoot McNairy) aquilo que, junto com aspecto afetivo existente, os afazeres domésticos são de fato: trabalho não pago. Verdade que precisa ser dita, mas nem precisava, pois Heller cria várias situações que refletem essa limitação. No caso, uma mãe que está experimentando transformações naturais no corpo seguidas de transformações sobrenaturais que, no contexto da ficção, destacam a passagem etária em sentido figurado.
Nesse ponto a referência está no rumo adequado. Através daquele comportamento estranho - em casa, com o filho, na creche e no restaurante -, o filme oferece sintomas de uma vida doméstica quase enclausurada na figura da dona de casa e mãe, enquanto o marido empregado retorna ao lar para ser servido. Entre a cachorrada, na gíria, também está o aumento de apetite sexual. Quando a esposa deixa, momentaneamente, o papel de cuidadora e guardiã daquela casa e se torna uma cadela, metafórica ou literalmente. Aliás, quando ela sai à noite, em corpo animalesco, ou é seguida por uma matilha de cães, está uma das lacunas mais curiosas do filme. Será que ela engata por aí simbolizando o tédio monogâmico e o adultério? Não há resposta, não se indica nada nesse sentido pelo simples fato de que Nightbitch é um drama edificante que não entra nesse assunto.
Coexistindo com o lado contestatório e ousado, há um movimento de resignação romântica. Quando vemos o marido folgado deixando aquele bairro pequeno-burguês até se pode imaginar que algo selvagem, em certo sentido, pode acontecer. Entretanto, eles dão um tempo para que, dividindo tarefas de cuidado e sobrando tempo para ela se desenvolver mais, haja um relativo empoderamento feminino e um reconhecimento masculino - o prato de macarrão jogado pela criança de dois anos de idade simboliza essa tomada de consciência pelo homem.
A pesquisa da protagonista sobre mitologias não tem nada de mais. É algo válido nesse ambiente de ficção fantasiosa. Contudo, gradualmente aumenta o tom do discurso direto sobre o sagrado feminino e o apagamento de fronteiras ontológicas entre ser humano e outros animais, deixando a conciliação mais forçada ainda, meio como presépio, meio como caverna. Na exposição artística dessa mãe, contudo, observamos uma arte bem objetiva, nada da abstração exagerada de certa arte niilista. E aí sim poderia ocorrer uma ironia no desfecho, tal como o macaco Xico de Caras & Bocas (2009-2010), uma novela com chimpanzé que pinta quadros.
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Lista de fantasy dramedy no subgênero magical fiction:
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