sábado, 7 de junho de 2025

Retrato falado

 Ainda Estou Aqui

(tragédia,
BRA, 2024)
de Walter Salles.


 
por Paulo Ayres

Assim como é possível avaliar os dramas Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007) sem levar em conta a fidelidade exata dos fatos reais da época em que se passam, é possível observar Ainda Estou Aqui, o mais recente fenômeno cinematográfico brasileiro, abstraindo a imponência de indicações e fotos em preto e branco que sugerem um peso de registro reverencial. É provavelmente, também, o filme brasileiro mais famoso sobre o período da ditadura que começou em 1964. Uma espécie de síntese de longo alcance de filmes como Zuzu Angel (2006), Batismo de Sangue (2006) e O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006). O conceito está nesse papel de drama edificante com capacidade de reunir em si uma média temática e uma determinada proposta de ficção como representação nacional. Sem ignorar essa projeção de peso e a recepção de grande agitação, Ainda Estou Aqui é uma totalidade artística própria que pode até ser vista por uma sul-coreana, em seu apartamento, que tem apenas as informações que o longa disponibiliza.

O centro gravitacional que Walter Salles conduz na família de Eunice Paiva (Fernanda Torres) procura aquela conhecida ideia de oferecer uma sensação de proximidade tanto da vida cotidiana, daquele núcleo familiar, quanto em relação as diferenças essenciais contidas num regime de exceção. Mergulhamos com Fernanda Torres no lazer ensolarado da praia carioca e nos aproximamos de Eunice mofando numa cela escura, ouvindo frases, lamentações e gritos vindos do corredor — que, por sinal, é lavado. Depois de passar alguns dias detida pela autocracia burguesa, de volta ao lar, numa cena de banho, de costas, a protagonista simboliza um primeiro sinal de possível renovação em meio à tragédia. A sequência, bem divulgada em trailer, da foto sorrindo, feita pela revista Manchete, é a confirmação dessa postura de sobreviver e se reerguer. Não se trata exatamente de uma iluminação individual ou algo do tipo. Salles e sua equipe iluminarão a textura da imagem nas duas partes finais que se passam em 1996 e 2014. Ambas partes, ademais, não têm a câmera um pouco tensa que surge às vezes na primeira e maior parte — o aspecto que poderia confirmar um tríler não se desenvolve e não predomina. Na mudança de filtro, que indica um país passando por um tempo diferente, o estado brasileiro reconhece sua responsabilidade através de um atestado de óbito sem corpo. Em seguida, Fernanda Montenegro, fazendo uma Eunice de idade mais avançada e de cadeira de rodas, completa o desenvolvimento, porém com o semblante sério do mal de Alzheimer. Ainda Estou Aqui, enquanto síntese referencial, canaliza a temática na protagonista que estuda e se engaja em movimentos sociais, entre eles, a busca de reparação histórica. Ao mesmo tempo, faz um espécie de vinculação geracional ao estilo de A Vida Invisível (2019).
 
Voltando a análise para o registro do início da década de 1970, uma variedade de passagens íntimas acompanham idas e vindas pela casa da família Paiva. Entra e sai de família grande, com vários filhos, dinâmica interrompida pela presença momentânea de servidores policiais. Rubens Paiva (Selton Mello) some ao ser levado pelas autoridades e Vera (Valentina Herszage), a filha mais velha, fica um tempo em Londres, contribuindo com filmagens dentro da filmagem. Há um clima e coloração de lembranças editadas e condensadas. Nesse sentido, torna-se um componente especial na tragédia audiovisual a palavra: frases explicativas, depoimentos, traduções, leitura de carta, reconhecimento facial em interrogatório etc. No caderno de supostos opositores procurados, Eunice diz que não reconhece ninguém nas páginas folheadas. Em outras conversas ali, com o olhar mais atento, vê o marido e, depois, até a si mesma em foto preto e branca.
 
O reconhecimento de Ainda Estou Aqui enquanto obra interessante, como no exemplo da cena de interrogatório, necessita que o olhar esteja atento para o objeto em si mesmo. Destaque nesse sentido é, no entanto, a sequência do deslocamento através dos carros de polícia pela cidade. O espaço passa ligeiro para registrar detalhadamente no olhar, mas oferece uma ótima reconstituição e foco no trajeto. Uma sensação de ser refém estético ocorre de forma eficaz.

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