domingo, 27 de agosto de 2023

Nascimento múltiplo

Man of Steel

(tríler,
USA, 2013),
de Zack Snyder.
 


= = =
por Ricardo Vieira Lisboa
À Pala de Walsh/2013

Visto no brilhante e efervescente ecrã de 300 metros quadrados que agora se inaugura, o que cedo se percebe é que não será o tamanho do dito, nem dos óculos que o acompanham, que acrescenta à mais recente interpretação do Super-Homem a grandeza que se esperava. Também não se esperava que na sala de cinema com a tecnologia mais pontiaguda que há por cá se apresentasse o filme à imprensa acompanhado com baladas pop como música de fundo. Independentemente das condicionantes da exibição, há que olhar para o mais recente filme de Zack Snyder e discorrer sobre: Cuecas; O efeito Nolan; Autofagia ou a metáfora involuntária; O messias e os perigos do revisionismo.

Cuecas:
o novo milénio terá trazido poucos novos géneros (ou subgéneros) à máquina de Hollywood, talvez o found footage e o moderno filme de super-heróis sejam as poucas excepções (entenda-se moderno no sentido em que, ao contrário das adaptações do anos 80 que mimetizavam as séries televisivas, as recentes adaptações de BDs são objectos independentes desse mercado paralelo). Nesse sentido, os exemplos de filmes de man vêm pululando: spider-man, super-man, iron-man, bat-man, x-men. E com eles, quase sem excepção, uma ideia de que será positivo credibilizar os ícones infantis das tirinhas, dando-lhes dilemas morais, dificuldades de integração na sociedade, triângulos amorosos e toda uma panóplia de sentimentos e problemas próprios das gentes que assistem ao festim de explosões digitais. Tal empresa carrega uma certa dose de ridículo porque, por muito sofredor que o herói seja, a verdade é que ele deita teias pelas pulsos ou cospe raios vermelhos dos olhos ou um sem número de outras capacidades extraordinárias. Em Man of Steel tudo isso se cose de forma demasiado visível, nomeadamente no facto de o messiânico herói não transportar as habituais cuecas por fora do fato. A lógica é compreensível, quem usa cuecas por fora das calças?, mas esquece o básico, quem usa capa e voa e vê através das paredes e dispara tiros pelos olhinhos e é invencível a tudo menos aos materiais provenientes de um planeta distante? Adaptar um herói de banda desenhada envolve uma aceitação da fantasia juvenil que o próprio acarreta e por isso todas estas tentativas de lhe conferir verosimilhança caem no ridículo.

O efeito Nolan e o malsinado Snyder: Claro que nem todos os realizadores seguem o caminho da credibilização, mas Christopher Nolan é de todos o mais visível dos perpetradores. Em Man of Steel a sua presença está sublinhada como co-argumentista e como produtor, mas o que mais espanta é perceber como essa presença condiciona de forma tão evidente a direcção de Snyder. Zack Snyder é um dos melhores tarefeiros da máquina de Hollywood e deu origem a alguns títulos muito acima do que seria de esperar, nomeadamente Watchmen (2009), com base na graphic novel de Alan Moore e Dave Gibbons, ou a actualização de Dawn of the Dead (2004), com argumento de James Gunn. Parece-me portanto que Snyder é um realizador à medida do seu argumento, e como tal será tanto melhor quanto o material de origem. Neste mais recente título o que é surpreendente é o facto do realizador que conhecíamos de um apurado sentido visual e fetichista do ralenti estar desaparecido para lhe darem lugar câmaras ao ombro e acção frenética e incompreensível, ou seja, aquilo que Nolan nos tinha habituado nos seus Batman [2005–2012].

Autofagia ou a metáfora involuntária: Se a primeira década de filmes de super-heróis trouxe tudo aquilo que referi no primeiro ponto, esta segunda década parece repetir a anterior: tivemos no ano passado o reboot de X-Men [X-Men: First Class (2011)] depois dos vários filmes de Bryan Singer, de Spider-Man [The Amazing Spider-Man (2012)] depois da recente trilogia de Sam Raimi, e agora esta renovação do Superman depois de Superman Returns (2006). Este estado de coisas em que a produção de Hollywood se repete ad infinitum é representado de forma bastante esclarecedora (ainda que certamente inconsciente) na própria backstory do filme. Tudo começa no planeta Krypton, lá longe nos confins do espaço, e o outrora grandioso império dos kryptonianos está em declínio devido fundamentalmente a dois factores: por um lado todos os indivíduos do império foram desenhados geneticamente de modo a cumprir uma função predefinida na sociedade — impedindo assim os reveses do acaso e as suas infinitas possibilidades; por outro lado, a grande necessidade de recursos levou à exploração do centro do planeta culminando na sua implosão e consequente destruição dos seus habitantes. Está visto que o paralelismo com o império de Hollywood é claro como água, também o outrora grande império definha e os motivos são semelhantes: cada filme é o resultado matemático da soma dos seus ingredientes com vista a um publico específico e catalogado (impedindo a surpresa e o desafio de algo inesperado) e, em vez de dar a esse mesmo público objectos novos, cospe-lhes os mesmos filmes (literalmente) vezes e vezes sem conta.

O messias e os perigos do revisionismo: Como acabei de referir, todos os habitantes de Krypton são o resultado do desenho genético pré-estabelecido, portanto todos originam de concepção imaculada, ao contrário do super-man que é o primeiro parto natural em mais de 300 anos. Divertido será reparar que a promessa do planeta, o messias, seja aquele — o único — concebido em pecado. Este ‘jesuização’ do super-herói já não é de agora, mas aqui ganha uma proporção perigosa (e de novo ridícula, o herói antes de se encontrar é um saltimbanco barbudo, mas assim que veste o facto de látex justinho perde miraculosamente a barba) quando se entram por caminhos de revisionismo histórico. Toda a sequência final do filme se passa na baixa de Nova Iorque (há uns meses Jon Stewart reclamava no seu The Daily Show sobre o facto de Manhattan se ter tornado uma escala para as catástrofes: “tal bomba é capaz de destruir a área de três Manhattans”) onde os perigosos alienígenas atacam em força. Snyder filma grande parte da batalha ‘épica’ do ponto de vista dos transeuntes que se vêem envolvidos na pancadaria intergalática e envolvidos também pelos escombros e fuligem que a destruição de múltiplos arranha-céus produz. É no mínimo de mau gosto encenar todo o fogo de artifício de um filme de pipoca no exacto local onde se deram os traumáticos atentados a 11 de Setembro de 2001, mas pior é reencenar o horror das pessoas que lá trabalhavam ou viviam simplesmente pelo desejo de agigantar a acção de um filme — sem pelo caminho causar qualquer sensação de expiação desses acontecimentos [como por exemplo acontecia em Cloverfield (2008)]. Como se isto não bastasse, cria-se a certa altura o subentendido perverso de que se o  Super-Homem lá tivesse estado ter-se-iam evitado os atentados. Discursos como este são o pão para a boca de interesses anti-democráticos (e fascizantes, coisa que o último filme do Batman deixava bem claro) que não devem nem pode ser sustentados, muito menos através de entretenimento supostamente saudável.

Pode o leitor pensar que quem escreve estas linhas detesta filmes de pipoca e blockbusters, mas desengane-se. Puxando levemente pela memória recordo três títulos dos últimos dois anos que merecem o meu total respeito: John Carter (2012), Mission Impossible: Ghost Protocol (2011) e Captain America: The First Avenger (2011). Cada um deste filmes soube oferecer entretenimento inteligente e nunca manipulativo, sempre devedor das suas origens mas nem por isso reverencial, suficientemente parolo e deliciosamente dedicado. Tudo o que Man of Steel não é.

= = =
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário