(tríler,
USA, 2021)
de Denis Villeneuve.
Não será muito justo avaliar uma obra a meio, e a verdade é que esta é apenas a primeira de duas partes da adaptação de Denis Villeneuve do livro de Frank Herbert, repleta de nova informação e enfraquecida desde logo pela necessidade de estabelecer uma mitologia própria. Mas a primeira impressão é mesmo que esta é a (Christopher) Nolanização de Villeneuve, no sentido de se deslumbrar com a escala da acção e pelas possibilidades técnicas, em detrimento do desenvolvimento de personagens complexas e que criem momentos emocionais e genuínos (e não pré-fabricados a serviço do guião); mas o que salta à vista também é o quão anónima é esta versão de Villeneuve, que sem arriscar quase nada de um toque pessoal, procura aqui acima de tudo respeitar o material de origem (para Villeneuve “mais importante do que a bíblia”), isto é, jogar pelo seguro. Além da fotografia com tons de laranja e o minimalismo de alguns décors interiores que traz de Blade Runner 2049 (2017), estamos longe do cinema de Villeneuve, em particular de Arrival (2016) e Sicario (2015), onde por exemplo e em contraste com Dune (2021), toda a acção acompanha o mapeamento emocional da sua protagonista, cujas motivações e preocupações ocupam o lugar central. A excepção a essa anonimidade é o uso recorrente, tal como em Arrival, de pequenos momentos de flashforward, vislumbres rápidos de pedaços de sonhos ou visões que disfarçam-se de memórias mas que são na verdade alucinações premonitórias — é um ponto de contacto também com o filme mais interessante de Nolan, Interstellar (2014), pela manipulação temporal e investimento na criação de significado emocional na “viagem” do protagonista, mas que aqui, em Dune, esses momentos parecem surgir apenas como um mecanismo para manter o interesse do espectador sobre o que ainda falta mostrar (como por exemplo, antecipando a interacção com uma importante personagem que aparece apenas nos últimos minutos), durante as partes em que o filme se alonga a estabelecer a tal mitologia.
Villeneuve definiu o filme como “uma carta de amor” à experiência de assistir cinema em sala, e se é verdade que quanto maior a tela, mais “impactante” será a experiência de sobrecarga sensorial (ajudado pela enésima variação de Hans Zimmer na banda-sonora, que apenas ajuda a diluir a identidade do filme, aproximando-o de outros tantos; por contraste, Villeneuve tinha arriscado e beneficiado das composições distintas de Jóhann Jóhannsson em Sicario e Arrival), é algo decepcionante que Villeneuve associe essa experiência de cinema em sala a uma questão de escala, e não a uma questão de intimidade, proximidade e empatia com as inquietações e tribulações das personagens — que reconhecemos de outros filmes seus, como Incendies (2010), Prisoners (2013) ou Sicario — onde por exemplo a escala é muito menor, é apenas uma viagem de carro por território inimigo, mas a tensão e o perigo da sequência pivotal desse filme não encontra rival em Dune (porque em Sicario preocupamo-nos de facto com o destino da protagonista). Uma das melhores cenas de Dune acontece perto do início, quando o protagonista, Paul, encontra o seu pai a olhar para os lagos do seu planeta mãe, e têm uma troca de palavras aberta e genuína sobre os anseios em relação ao futuro próximo, uma candura que o filme não repete depois, muito menos na descrição da relação de Paul com a sua mãe (e os seus “poderes” ocultos), cuja seriedade dramática sempre presente apenas ganha contexto e emoção a partir do momento em que os dois se encontram em fuga (da mesma forma que a relação próxima de Paul com os soldados Duncan ou Gurney nunca é explicada, apenas existe para preencher espaço).
A escolha de um cineasta como Villeneuve (que vem do cinema independente e que nos últimos tempos, promovido a grandes produções, tem apresentado obras inteligentes e adultas) não é surpreendente para uma Hollywood que tenta assimilar diferentes talentos para o seu sistema como forma de sobrevivência — já há cerca de duas décadas que a “máquina” de Hollywood tem aprendido a “canibalizar” o cinema indie americano para rentabilizar alguns clarões de originalidade, cedendo mega-produções a autores como Peter Jackson ou Guillermo del Toro, em vez de tarefeiros como Danny Boyle ou Ron Howard (a excepção histórica é mesmo a versão anterior de Dune de 1984 a cargo de David Lynch, que diga-se o que se quiser sobre essa versão, pelo menos arriscava). Por isso, o que mais surpreende aqui é mesmo a auto-anulação de Villeneuve, apagando os traços anteriores do seu cinema e do próprio material de origem, conformando tudo a algo que não cause estranheza ao espectador, talvez por receio de imitar os falhanços catastróficos de Lynch e Jodorowsky. Não há (para já) muito que distinga esta nova velha história da personagem predestinada, do “Escolhido” que aparece para libertar um povo, de outros cenários parecidos (Star Wars [1977-], The Matrix [1999-], a bíblia…). Mas, mesmo assim… existem alguns momentos empolgantes, especialmente a partir do momento em que entram em acção os membros da tribo indígena Fremen, já perto do final, como que antevendo um vislumbre do que poderá ser a segunda parte… e porque Villeneuve ainda é capaz de surpreender, se estamos no intervalo, os prognósticos só no final do jogo.
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