domingo, 4 de fevereiro de 2024

Mobilidade passiva

 Green Book 
 
(dramédia,
USA, 2018),
de Peter Farrelly.
 

 
= = =
por Inkoo Kang
Slate/2018
 
Driving Mr. Shirley

Existe um subgênero cinematográfico mais imediatamente suspeito do que o filme feel-good com temática racial? Filmes como The Blind Side [2009] e The Help [2011] — e antes deles, uma lista muito longa de vencedores do Oscar, de Guess Who's Coming to Dinner [1967] a Driving Miss Daisy [1989] — deixam claro que o público pretendeu ficar satisfeito com esses contos imaculados, com suas perspectivas de branco e prioridades de branco, que geralmente não são observadores de cor. Até mesmo Hidden Figures [2016], que melhorou muito o subgênero, colocando as mulheres negras no centro de sua história, enfiou um salvador branco (fictício) em sua já inspiradora versão da história.

Ambientada em 1962, a nova dramédia de viagem de carro Green Book chega, então, com muita bagagem pesando no porta-malas, mesmo que desta vez seja o motorista que é branco. Em uma cena inicial, vemos Tony Lip de Viggo Mortensen, um idiota ítalo-americano entre empregos, jogando fora um par de copos seus depois que foram usados ​​por dois trabalhadores negros de manutenção que consertam sua pia. No final do filme, está predeterminado que ele fará amizade com Donald Shirley (Mahershala Ali), o negro pianista de jazz para quem dirigirá de Nova York ao Alabama e de volta numa turnê de oito semanas. Baseado em eventos reais e coescrito pelo filho de Lip, Nick Vallelonga, com Brian Hayes Currie e o diretor Peter Farrelly (dos irmãos Farrelly), Green Book foca na jornada de Tony para superar sua ignorância, apesar do fato de que qualquer aspecto da vida de Shirley teria feito um filme muito mais fascinante. Em vez disso, estamos emperrados vendo um homem branco fazer seu primeiro amigo negro.

Nomeado em referência ao guia de viagens que lista hotéis e restaurantes onde negros são bem-vindos, Green Book é perfeitamente adequado para o que é: isca [bait] do Oscar de médio porte que joga o mais seguro possível. Mortensen presume isso em um papel escrito de forma tão ampla que seu personagem poderia ser confundido com uma mortadela que ganhou consciência. Mas Ali, enfeitado com os óculos duros e o bigode fino de Igor Stravinsky, é majestoso, com uma rigidez refinada que logo revela camadas trágicas. A disputa verbal entre eles estala, nunca mais do que em sua primeira investida juntos, enquanto os dois machos alfa — um violento e orgulhosamente rude, o outro um punho de ferro envolto em veludo — lutam pelo domínio. Com uma aparência calorosa e bonita e piscando muitos callbacks, o filme às vezes parece um abraço de urso amigável, seguido de vários tapinhas nas costas.

Seus encantos não são insignificantes, mesmo numa cena questionável em que Tony ensina Donald, crescido na Rússia como um estudante do conservatório, a comer frango frito. Com sua inteligência e punhos mais rápidos, Tony salva o alcoólatra Donald de várias dificuldades, incluindo algumas envolvendo a polícia. (Chega, entretanto, uma situação difícil de que apenas alguém tão conectado à alta sociedade quanto Donald pode resgatá-los.) Por sua vez, Donald trata Tony não apenas como sua Srta. Daisy, a quem deveria ensinar maior tolerância, mas como sua Eliza Doolittle pessoal, ensinando a seu motorista o comportamento adequado e como escrever cartas de amor dignas de desmaio [swoon-worthy] para sua esposa (Linda Cardellini, aproveitando ao máximo um papel de nada). Enquanto Donald lamenta o estilo de vida nômade de músico em turnê, comparando-se a um trabalhador de carnaval, Tony, que pensava que “o Sul” significava Atlantic City, tem seus olhos abertos para a beleza e a bestialidade de seu país. Até o racismo de segunda mão é um insulto o suficiente para ele. Para Tony, as costas retas de Donald, sorrisos educados e maneiras impecáveis ​​tornam-se elogiáveis ​​e irritantes.

Tudo bem — ou seria se os vislumbres que tivemos desse prodígio do piano multilíngue, sem ninguém para conversar, não fossem tão tentadores. Aprendemos muito pouco sobre os sentimentos de Donald sobre se apresentar em mansões, incluindo antigas plantations, cheias de brancos que adoram seus talentos, mas o tratam como algo inferior. (Ele se ressente deles, é claro, mas então por que optou por um corte do pagamento para passar por essa série de humilhações?) Também somos enganados, tirando saber sobre seus relacionamentos com outras pessoas negras, além da reclamação óbvia de que ele é considerado “negro não o suficiente”. Sua dependência do álcool é transformada apenas em combustível para a trama. Muitas vezes somos forçados a olhar para Donald através dos olhos de Tony, em vez de aprender mais sobre ele por conta própria.

Estimulada pela química de Ali e Mortensen, a dinâmica da estranha dupla é cativante, embora familiar, mas o racismo não envolve apenas esses tipos de relações interpessoais. É também sobre desequilíbrios de poder institucionais. Essa realidade diminui o apelo estúpido do filme, especialmente devido ao seu cenário inicial no Bronx do pós-guerra, onde o white flight e o planejamento urbano de coração frio logo deixariam o extremo sul do bairro um paraíso para o crime e a pobreza. Amizades entre pessoas de diferentes raças podem trazer mais alegria para o mundo, mas sozinhas não acabam com o racismo. Você certamente pode desfrutar deste conto comovente sobre Tony e Donald como um evento isolado, mesmo que se concentre num homem branco preconceituoso concedendo humanidade a um homem negro excepcional que, por sua própria admissão, tem pouco em comum com seus colegas negros americanos. Mas há algo impróprio em destacar esta história, sobre o alcance aparentemente estreito do racismo e como pode ser facilmente desfeito. Green Book condena os bolsões culturais projetados para fazer os brancos se sentirem bem, muitas vezes às custas das pessoas de cor. Mas isso é tudo que ele faz também.

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