por Paulo Ayres
Na trilogia satírica Back to the Future (1985–1990), Robert Zemeckis construiu narrativas em que o suspense e o clímax ocorrem numa movimentação acelerada para realizar determinadas atividades até um determinado tempo, como se fosse uma gincana com uma ampulheta. Em Cast Away, num outro estatuto de gênero e de temporalidade, o tempo diegético escorre por uns quatro anos e os dias parecem não passar, pois se trata de um homem totalmente isolado da sociedade tentando sobreviver num cenário tão distante quanto entediante. Entediante para o protagonista, pois o espectador ganha um drama interessante e paciente nessa passagem por uma ilha do Pacífico Sul. E é no contraste com a civilização que o filme cresce e diminui, até se apagar.
Cast Away é um bom filme. A dramédia foi filmada em duas partes, antes e depois do emagrecimento de Tom Hanks, e durante o longo intervalo Zemeckis filmou o tríler sobrenatural What Lies Beneath (2000). Quanto ao desdobramento do enredo de Cast Away, até há a divisão aparente em três partes, indicando uma tentativa de síntese dialética no fim, mas o que acontece mesmo são dois blocos rígidos, as pontas e o recheio que é a vida na ilha. O movimento circular do drama edificante soa como um testemunho de resiliência e como a defesa de uma pequena dose de anticapitalismo romântico.
Na Rússia capitalista (da primeira década de regressão ao capitalismo), conhecemos Chuck Noland simbolizando a iniciativa privada entrando com tudo e exigindo uma dinâmica de produtividade lucrativa. Ele é um trabalhador estadunidense da FedEx, agência de despachos, discursando sobre a importância da temporalidade para os negócios. Um jantar natalino numa mesa cheia de pessoas confraternizando — incluindo a namorada (Hellen Hunt) — é uma cena que serve para sentir a diferença quando o isolamento total chegar para esse indivíduo social que representa o mundo contemporâneo e seus valores predominantes. Na ilha, na falta de relações sociais, ele sente a necessidade de criar um amigo imaginário na bola de vôlei Wilson. Com isso, mais do que ter como foco as dificuldades e as pequenas conquistas de uma vivência totalmente alienada, a lente de Zemeckis observa a ideologia burguesa e seus mitos ontológicos de fundação. Aquilo que Marx, ironizando o individualismo metodológico de teóricos burgueses, comparou com o gênero ficcional da robinsonada. O Robinson Crusoé aqui, diferente do livro (1719) de Daniel Defoe, tem mais indicativos de ser uma figura que deve toda sua formação material e cultural a uma coletividade e vai penar para se manter vivo miseravelmente quando é arrancado de forma abrupta da sociabilidade. Deste modo, aquilo que parecia ser o maior caso de merchandising da história da cinema, enchendo a tela com a marca da FedEx, gera um tom irônico nessa eco-dramedy de sobrevivência.
Desde a sequência do acidente aéreo, Zemeckis se concentra na criação climática, passando a ter como propósito transmitir a vastidão da natureza que é indiferente às emoções e, mesmo assim, desperta assombro infernal e contemplação paradisíaca. Com a fotografia de Don Burgess — que também trabalhou com Zemeckis e Hanks na dramédia Forrest Gump (1994) —, os limites da ilha se tornam um foco que dispensa até a trilha sonora de Alan Silvestri, fazendo uma experiência de imersão audiovisual naquele espaço natural. A música incidental retorna ao deixar a ilha, sinalizando o dualismo estético que se desenvolve. É como se a chuva forte que cai na cidade e os horizontes de uma estrada fossem amenizados como ambiente seguro e lugar-comum.
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Lista de sci-fi dramedy no subgênero eco-fiction:
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