Com gana de dialogar com a Geração Z, a a versão de Child's Play de 2019 se tornou uma obra destoante e alternativa. Uma proposta que se interessa por internet, smartphones e aplicativos; isto é, o cotidiano que predomina nos últimos anos. Contudo, ao priorizar essa superfície, o filme de Lars Klevberg se afasta dos fundamentos da franquia original. Esse Chucky (com voz de Mark Hamill) não tem nada de sobrenatural; ele é uma inteligência artificial de um enredo de ficção científica. O incômodo que bonecos geram, como representações de seres humanos nos fitando “calados” — medo esse que é a base na criação da série original —, não está presente na mesma intensidade quando o boneco em questão já anda e conversa “naturalmente” com seus donos, pois são brinquedos-robôs vendidos como qualquer tablet.
Ficção fantasiosa, os episódios longos da série original são formados por seis folhetins: Child's Play (1988), Child's Play II (1990), Child's Play III (1991), Bride of Chucky (1998), Curse of Chucky (2013) e Cult of Chucky (2017). No entanto, a experiência mais ousada é quando adere ao gênero da comédia: Seed of Chucky (2004). Distinção em duplo sentido, pois, além da abordagem comediesca, é uma sátira realista que ironiza Hollywood. Nesse ponto, é um filme do criador Don Mancini que se destaca ao lado da versão do Chucky robô.
Movido a labor, o Chucky em IA é fruto de uma angústia da classe operária encarnada em produtos que ganham vida própria e se voltam contra os cidadãos do mundo burguês. Nesse techno-feuilleton, o mercado se mostra como a grande força que domina. Dominação essa, ao mesmo tempo, sedutora e macabra. A Kaslan Corporation é uma empresa multinacional de diversos produtos eletrônicos — tal como a Apple, a Microsoft, a Samsung etc. — que instala uma filial em regiões terceiro-mundistas; ou, no caso desse Child's Play, “segundo-mundista”, ao mostrar uma linha de produção capitalista no Vietnã socialista — contraparte negativa da abertura controlada ao mercado, enquanto tática de desenvolvimento das forças produtivas. Conectado a isso, a mesma Kaslan faz lançamentos de produtos em comércios do outro lado do mundo. No caso, em Chicago (EUA), onde Karen Barclay (Aubrey Plaza) é uma servidora comercial. Trocando em miúdos: nesse filme, não há feitiços e fantasmas. Há fetiche da mercadoria.
Não há um final feliz propriamente dito no filme de Klevberg. Há apenas uma batalha vencida pela turma anarquista de Andy Barclay (Gabriel Bateman), sublinhando o aspecto de resistência urbana frente a um mundo distópico que gradualmente se desenha... talvez para algo parecido com M3gan (2022-) e The Eletric State (2025). A sátira se encerra com a publicidade da Kaslan, anunciando sua absolvição jurídica após o banho de sangue, e, em seguida, as mercadorias nos encaram.
Resíduos problemáticos: nota-se a manjada justificação moralista das mortes do namorado da mãe, que tem outra família e a engana, e de um nerd solitário do prédio, que é um voyeur pervertido. No entanto, isso é minimizado pelo fato de que a tendência assassina de Chucky ser alimentada pela amizade doentia que nutre por Andy, fazendo do robô um agente simbólico de certas mágoas e raivas que o piá possui na sua vida cotidiana — além do fato sugestivo de que o lazer dos jovens, vendo The Texas Chainsaw Massacre II (1986) na tevê, inspira esse Buddi. O gato de estimação e a vizinha bacana (mãe do detetive), ademais, são exemplos de vítimas “inocentes” na narrativa. Mais sintomático ainda é o fato desse Chucky, numa referência ao alienígena da dramédia E.T. (1982), brilhar a ponta do seu dedo controlando uma rede de tecnologia de ponta, que, apesar de ser feita pela atividade fundante, evidencia a falta de autocontrole da humanidade alienada.
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Lista de sci-fi feuilleton no subgênero techno-fiction:
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