terça-feira, 29 de abril de 2025

Tortura realista

 A Clockwork Orange

(folhetim,
UK/USA, 1971)
de Stanley Kubrick.
 
 
 
  por Paulo Ayres

Entre todos os exemplos de “olhar Kubrick” contidos na filmografia do gênio estadunidense, A Clockwork Orange reserva os mais emblemáticos. Obviamente que o protagonista narrador já fulmina a câmera no primeiro plano. Ali está, olhando diretamente para nós, Alex DeLarge (Malcolm McDowell) e seus três amigos de gangue, surgindo no quadro em movimento de recuo. O estabelecimento boêmio é branco, com adornos aberrantes e mesas em forma de mulheres. Além da cenografia esdrúxula, Stanley Kubrick se interessa pela marcação de pessoas em certa pose. É uma satirização obcecada pelos gestos pomposos (na trilha sonora esta até “Pomp and Circumstance Marches” de Edward Elgar) e mudanças de posicionamento. No enquadramento: um andar circular dos presidiários no pátio, uma taça de vinho com macarronada, etc. Para além disso, A Clockwork Orange observa as mudanças de posição social tanto mais que o tema direto da mudança comportamental. Junto com esses movimentos, a mudança interior se apresenta em olhares perturbadores, como P. R. Deltoid (Aubrey Morris) encarando Alex detido e dizendo que o adolescente sociopata agora é um assassino que vai para a prisão.
 
Virou uma referência conhecida, Alex num cinema experimental, com olhos arregalados, observando à força filmes com vários tipos de crueldade. No entanto, ainda falando dos olhares como indicadores subjetivos, o escritor Frank Alexander (Patrick Magee) tem o mais aterrorizante. Olhando, de maneira forçada, sua esposa ser estuprada e, depois, tremendo ao ouvir outra vez “Singin' in the Rain”. Canção alto-astral que se torna uma farpa na sua mente, assim como o gatilho traumático de Alex passa a ser a sua adorada Nona Sinfonia de Beethoven. São marcas dolorosas gravadas em corpos e Kubrick filma essas brainstorms na angústia da fisionomia e na imponência e frieza dos espectadores em volta. O folhetim de ficção científica alfineta o behaviorismo, é verdade, mas esparrama seu olhar satírico sobre as instituições educativa, penitenciária e médica dominadas pela racionalidade formal. Não poupa nem alguns supostos ativistas de esquerda, que enxergam em Alex um mero instrumento de contestação — o escritor paraplégico é um oposicionista, subversivo, criticando o governo conservador, que faz coisas como o Tratamento Ludovico.
 
Em outras circunstâncias faria sentido se alguém disser que vê cafonice, mas A Clockwork Orange é uma obra-prima e sua caricatura de futurologia retrô tem o charme na medida certa, com o transbordamento kitsch de cores, música erudita, câmeras lentas, que simulam às vezes um tipo de balé da chamada ultraviolência dos jovens delinquentes, e uma aceleração — ao som de “William Tell Overtur”, de Rossini — com Alex fazendo um ménage de fôlego com duas moças. Aliás, no livro edificante (1962) de Anthony Burgess, são duas meninas de uns dez anos embebedadas. Uma passagem perturbadora, mas o final moralista da obra literária é uma ruptura estranha: Alex passa a refletir sobre suas condutas criminosas e, por sua livre escolha, decide melhorar, buscando amadurecer como cidadão. Kubrick, por sua vez, mostra uma “solução” psicológica e política com uma baita ironia, entre flashs fotográficos e aperto de mãos com sorrisos cínicos.
 
Essa sátira realista de Kubrick gira em torno da tortura. Tanto a física quanto a psicológica. O quarteto fantástico de Alex começa a se dissolver quando ele dá uma pancada em Dim (Warren Clarke). Anos depois, como servidores policiais, dois deles torturam o antigo líder juvenil. Corpos que carregam marcas e ressentimentos, em diferentes graus, refletem atritos sociais em níveis variados, desde as mágoas parentais, rusgas fraternas até a barbárie mais abjeta. Mesmo com sermões ironizados, há um padre que denuncia a coisificação contida no racionalismo formal da nova técnica corretiva. Kubrick, diferente de Burgess, valoriza com ressalvas a mensagem reflexiva do sacerdote sobre a escolha enquanto atributo humano. O techno-feuilleton do cineasta está de olho no tabuleiro da sociedade e não somente na abstração regional e imediata de uma peça se movendo. Só acha que esse movimento do filme é circular quem se prende no olhar individual do protagonista e abstrai todas as mudanças sociais, que ele deslocou e que gravitam em torno dele de modo qualitativamente diverso. O plano derradeiro, da cavalgada imaginária com plateia burguesa, é a frieza mais calorosa da história do cinema.
 
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