quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Programa realista

 Companion 

(folhetim,
USA
, 2025)
de [ ]. 
 


por Paulo Ayres

Para os que supervalorizam uma virada de roteiro, Companion quebra essa proposta de imediato. Não tem como escapar: cartaz e trailer estão lá indicando que a namorada fofa do enredo é um robô. E mais: sabe que algo vai acontecer na relação com essa acompanhante artificial e mortes ocorrerão. Isso joga contra o folhetim? De maneira alguma. Uma sátira realista como essa pode até ser adiantada em spoilers dos acontecimentos centrais que a fruição profunda permanece no espectador de primeira vez.
 
Companion mostra um futuro alternativo e próximo. Acompanhantes robóticos são vendidos e alugados pela empresa Empathix. Um deles é Iris (Sophie Thatcher), acompanhando seu dono/namorado, Josh (Jack Quaid), até a casa de campo de Sergey (Rupert Friend). Se a ironia com as categorias de dono e namorado já estão ali pulsando com Iris e Patrick (Lukas Gage) — androide que pertence a Eli (Harvey Guillén), outro convidado na residência —, a namorada de Sergey aumenta o jogo metafórico. Kat (Megan Suri) que, até certo momento, parece uma namorada robô, não é. Cúmplice de Josh numa espécie de golpe com latrocínio indireto, essa outra moça é uma presença que confirma a ideia criativa de satirizar as relações afetivo-sexuais na nossa formação histórica. Além desses três casais, há um quarto casal num carro, no desfecho da rodovia. Estão discutindo a relação. Não sabemos se a mulher, que está ouvindo as reclamações do parceiro, é robô ou não. É nesse ponto de ironia fina que Companion queria chegar de fato.
 
O folhetim de ficção científica, ademais, não é insensível quanto a questão de emoções envolvidas. Contudo, esse aspecto emocional está na posição de um componente de reflexão. Josh monta seu plano sabendo que Iris é obcecada por ele. O filme de [ ] foca a questão da memória geral e da memória afetiva, em particular. O vínculo de afeição construída é caracterizado por certos momentos chave. O primeiro encontro no supermercado ou numa festa à fantasia, por exemplo. E, como se trata de uma encenação satírica, não importa entrar na explicação precisa se é uma simulação ou não. Importa, nesse contexto estético, é fazer dessa moça incomum uma estranha heroína que nos coloca para refletir sobre a afetividade no capitalismo tardio. Além disso, no fato de ser, também, uma garota de programa em duplo sentido, gera outra dimensão de espelhamento para além da coisificação entre cônjuges.
 
A máquina revoltada em Companion é distinta da que ocorre em Terminator III: Rise of the Machines (2003), outro tecno-folhetim americano. No filme de Jonathan Mostow, trata-se de uma satirização que tem como foco a dependência tecnológica para a vida cotidiana. A rebelião das máquinas contemporâneas é uma autonomia programada através de um sistema de conexão. A T-X (Kristanna Loken), robô exterminadora, é, nesse sentido, diferente de Iris. Essa última é veículo de humanização da trama e sua resistência simboliza relações sociais na contraditoriedade de cidadãos e agentes privados. Companion não tem como horizonte um búnquer, doméstico ou institucional, mas a vista panorâmica dos incontáveis abrigos de famílias nucleares do nosso mundo.
 
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