domingo, 13 de novembro de 2022

Arma branca

White Chicks 
 
(comédia,
USA, 2004),
de Keenen Ivory Wayans.
 

 

por Paulo Ayres

Em meio a toda a sua tosquice, White Chicks surge com uma missão nobre: exorcizar uma tradição performática que simboliza o racismo estrutural nos Estados Unidos, o blackface. Esse método de humor racista foi, paulatinamente, sendo considerado uma idiotice ofensiva e sem graça durante o século passado, porém a sua influência, ainda que cada vez mais residual, continuou sobrevivendo na representação dos negros em desenhos e encenações. A comédia criminal de Keenen Ivory Wayans, então, é estruturada na proposta de subverter essa tendência, fazendo da “branquitude” dominante o principal objeto de escárnio, através do método da imitação travestida e estereotipada. Não há um mau gosto propriamente nisso, mas sim uma ideia inteligente de reparação artística com o instrumento do opressor, que continua dominante. Aí está a façanha do filme e ele segue uma linha de sátiras edificantes que tem a maquiagem, enquanto disfarce, no foco do enredo, como Mrs. Doubtfire (1993) e Big Momma's House (2000).

As coisas mudam de figura quando o objeto de análise deixa de ser a ideia em si para como Wayans desenvolve essa ótima ideia. A primeira questão que surge ao vermos a dupla de agentes do FBI, Kevin Copeland (Shawn Wayans) e Marcus Copeland (Marlon Wayans), disfarçados como patricinhas brancas e ricaças: será que uma comédia, enquanto sátira intermediária, é mesmo o tom certo para predominar num enredo tão absurdo? É preciso bastante complacência com a trama para ir aceitando os desdobramentos desse eixo nonsense, em que as pessoas, inclusive as que já conviveram com as gurias, não percebem que são outras pessoas — algo que, por outro lado, casaria bem com o tom de uma ficção farsesca. Outro elemento que joga contra a narrativa é dar pouca importância ao seu plot da investigação policial na classe capitalista milionária, fazendo disso apenas comentários escassos nos momentos de decifração do mistério.

White Chicks mostra alguma vitalidade quando mira diretamente naquela meta de subversão dita anteriormente. Assim como a operação infiltrada dos irmãos agentes, isso é feito do lado de dentro, através de uma aproximação afetiva, procurando um nível de empatia entre partes tão distintas. Conexão íntima essa que não impede o deboche, pelo contrário, é o impulso da ironia. O single de Vanessa Carlton, “A Thousand Miles”, torna-se o hino de identificação e celebração de uma tribo urbana, que, como todo grupo social, também possui a sua cota de paranoias e sofrimentos, por mais que seja também carregada de futilidade. Isso faz do trio de patricinhas amigáveis — “marginalizadas” dentro daquele círculo burguês — uma caricatura contundente como as de Clueless (1995) e Mean Girls (2004).
 
Nesse sentido, além da satirização costumeira do mundo juvenil e, num nível mais estrito, do mundo da alta boemia, White Chicks observa esse ambiente enquanto uma fração étnica e econômica que expressa o racismo estadunidense. O personagem hilário de Terry Crews, o jogador de basquete Latrell Spencer, é pensado, na medida certa, para representar um homem preto em busca de aceitação no estrato grã-fino; a sua obsessão em conquistar mulheres brancas indica isso. Até mesmo outra outsider no evento, a repórter Denise Porter (Rochelle Aytes), mesmo sendo uma mocinha de plot amoroso, aparece interessada em entrar nessa camada de ricos através da prostituição não oficial, achando normal um leilão beneficente de moças. Entretanto, White Chicks, nas suas conclusões, procura deslocar o aspecto mordaz como uma órbita paralela, reservando a domesticação moral para o seleto grupo por quem nutre uma identificação familista. Por isso que, ao contrário do que muita gente acha, o que atrapalha o filme não é a suposta vulgaridade, mas a dissolução romântica do grotesco.
 
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[0] Primeiro tratamento: 21/01/2022.
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