Mimic
(folhetim,
USA, 1997)
de Guillermo del Toro.
por Paulo Ayres
Quando Gregor Samsa acordou transformado num inseto enorme, em Die Verwandlung (1915), a humanidade ganhou uma sátira emblemática tanto do isolamento depressivo quanto da lumpenização do trabalhador coisificado. E o curioso é que essa simbolização se dá numa ficção de fantasia. Enquanto isso, muita ficção científica sobre entomologia, área de estudo da Dra. Susan Tyler (Mira Sorvino) em Mimic, tem que se esforçar muito para chegar na proximidade da sátira realista de Franz Kafka. Mimic, aliás, apareceu no ano de 1997, em que Hollywood também gerou o folhetim Starship Troopers e a comédia Men in Black — outros dois exemplos de sátiras de ficção científica se servindo de insetos.
Segundo longa cinematográfico do mexicano Guillermo del Toro e primeiro filme de uma trilogia, Mimic conta com um cineasta talentoso munido de uma direção de arte carregada e uma fotografia que realça a penumbra e a viscosidade. E ele dá vida a um enredo que, apesar de ter o ser vivo enquanto objeto temático, rasteja de maneira moribunda na reta final, ao se transformar numa contagem de cadáveres nos espaços abandonados do metrô. No texto direto, há um momento em que a sátira faz um comentário filosófico. O Dr. Gates
(F. Murray Abraham) cita Thomas Hobbes para falar de uma vida simplificada e brutal. Entretanto, o bellum omnium contra omnes precisa ser exposto sem a lente naturalista — lente revolucionária nos séculos 16 e 17 em que viveu o famoso materialista metafísico —, pois, caso contrário, a metáfora é esmagada ao confundir as dimensões da primeira natureza (natureza em sentido básico) e da “terceira natureza”, o reino da propriedade privada. É necessário uma dinâmica referencial sem o reducionismo de explicar a sociedade pelo reino animal e, para isso, é preciso sublinhar a especificidade da reprodução social e suas mediações. Em suma, a relativa falta de controle do ser
humano sobre outras matérias orgânicas, no nosso mundo, não acontece somente por ser um “laboratório muito maior”.
A questão está em como articular a metáfora de especulação ficcional, fazendo a narrativa ir além de determinados códigos de gênero. Mimic é uma sátira edificante, mas com um bom repertório iconográfico ao deixar um rastro de referências ao catolicismo e, com gana científica, ir suplantando a aura sobrenatural pelos dados da biologia evolutiva. No início do folhetim, há uma tática epidemiológica que envolve a engenharia genética, criando uma nova espécie de inseto, chamado de “judas” — com material genético de cupim e louva-a-deus, o híbrido é usado provisoriamente para erradicar baratas que espalhavam um vírus mortal para crianças. Ou seja, contra um fator biótico nocivo há a criação e o uso de uma arma biológica.
Três anos depois, ocorre gradualmente a investigação — científica e criminal — de que tipo de “inseto doméstico” está atacando cidadãos de Nova York. Dois guris, em busca de uns trocados, auxiliam as pesquisas de Susan Tyler, fornecendo-lhe insetos. É na procura de uma ooteca que ocorre a aproximação de um significado metafórico: os meninos se desentendem com uns “malditos” mendigos. Em seguida, numa área ainda mais profunda, invadem o território de outros supostos “lúmpens mendicantes” e sofrem o ataque. O eco-feuilleton salienta o caráter determinado e reativo das criaturas, convivendo e se defendendo dos seus “predadores”, que também criaram as condições de sua existência no “submundo” nova-iorquino.
Na verdade, a própria questão da identidade humana dos mutantes, no texto direto, está na contramão do sentido figurado no subtexto. Os vestígios indicam a presença de criaturas humanoides, possivelmente pertencentes à esfera do ser social. A virada de roteiro esclarece que se trata de uma mera adaptação mimética de reprodução orgânica, como meio de sobrevivência. Mimetizando o predador na sua aparência. O “colonial” Mr. Funny Shoes, então, não possui a complexidade de Gregor Samsa, isto é, um personagem que reflete bem a coisificação na vida cotidiana. E “A Metamorfose” é uma ficção mágica. Peculiaridades do reflexo estético, tão diferente do reflexo científico,
embora ambos tenham uma meta em comum: revelar a essência da realidade
objetiva.
Por outro lado, Mimic ganha um contorno expressivo com Chuy Gavoila (Alexander Goodwin), um garoto autista. Meio distraído da rotina na sociedade burguesa, trata-se de uma criança que reconhece vários calçados e imita os sons dos passos. Sem se importar com as variadas classes acima dos joelhos, que caminham pelo metrô e pela cidade em geral, a comunicação com os “rejeitados” do esgoto se torna possível.
= = =
= = =
Lista de sci-fi feuilleton no subgênero eco-fiction:
[0] Primeiro tratamento: 19/10/2021. = = =
Nenhum comentário:
Postar um comentário