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domingo, 19 de maio de 2024
Horizonte absoluto
sábado, 18 de maio de 2024
Maquiagem definitiva
(folhetim,
de Daniel Rezende.
É sugestivo que a operação realizada em Bingo: O Rei das Manhãs seja justamente expor a dualidade. Isso ocorre tanto no enredo, com a enésima historinha estruturada numa lição familista, como também na referência externa, pois o comentário histórico acontece quando o espectador associa esse reflexo com os acontecimentos do mundo real. É nessa segunda linha que o folhetim oferece algum fascínio.
Sejam quais forem os motivos para evitar trabalhar com os nomes de pessoas e empresas reais, o fato é que, nesse jogo de espelhos, obtém-se a exposição parcial da essência de uma determinada passagem histórica, em sintonia com o estilo característico desse objeto temático: a televisão privada brasileira (que usa sinal público) dos anos 1980 até certa parte da década de 1990. Período de esgotamento da autocracia burguesa e a busca televisiva por audiência testa altos níveis de tendência apelativa. (É claro que hoje em dia a essência da televisão privada continua igual, mas de modo menos descarado, mais regulado, quando comparamos a esse intervalo brasileiro de um quase vale-tudo.) Pois bem, o aclamado montador Daniel Rezende — Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) etc. — estreia na direção precisamente na função de selecionar as opções mais diretas numa encenação folhetinesca. Há um certo prazer simples, mas não irrelevante, nesse semi-biopic “não oficial” (e veremos, no fim do filme, de maneira decepcionante, que ele é “oficial” sim, no sentido limitante que isso remete), ao identificarmos esses duplos enquanto reflexos dos entes reais: Pedro Bial, como um mandachuva da TV Mundial, é a cara da Rede Globo mesmo; a TVP ironiza a emissora do Silvio Santos, que busca se estabilizar no posto de segundo lugar e tem menos receio em ser apelativa. Além disso, como “na TV nada se cria, tudo se copia”, a presença do gringo estadunidense, como instância controladora, serve também para evitar a leitura viralatista desse fenômeno histórico.
O Rei das Manhãs, a Rainha dos Baixinhos... um estúdio, uma plateia de crianças, produtores e patrocinadores babando no monitor de audiência... Tudo isso parece hoje, numa época de maior disseminação de séries e filmes com um “politicamente incorreto de almanaque” — vide The Simpsons (1989–), que tem até o Krusty —, algo reconhecido e anestesiado. E é mesmo na maioria dessas expressões. O diferencial de Bingo, portanto, é a necessidade de olhar esse tema no contexto brasileiro, vinculado a esse período histórico, reconhecendo os palhaços da tela nacional e como ela nos faz de palhaços. É por isso que os nomes não fazem muita diferença na proposta apresentada nessa sátira edificante. Assim como o próprio Bozo/Bingo é uma peça substituível nas engrenagens da mídia liberal.
Entretanto, o percurso da trama nos nega a saída da caverna sensacionalista para vermos inteiramente, através do espelhamento estético, todas as alienações apresentadas como determinações históricas. Não há exatamente uma mudança no seu conteúdo; o que há é um tratamento binário com um fio romântico, presente desde o início, que vai crescendo como uma bola de neve até ficar tão grande que a fração final do folhetim histórico se concentra numa moralização lacrimosa. A cena em que o filho de Augusto Mendes (Vladimir Brichta) liga para o pai no programa ao vivo — queixando-se, com voz chorosa, que ele brinca com todas as crianças, mas não tem tempo para o próprio filho — é uma jogada digna de novela mexicana da segunda divisão. O que é a Gretchen (Emmanuelle Araújo interpretando a única personagem direta, que não é um duplo), rebolando no meio de crianças, perto desse nível de sensacionalismo? Sensacionalismo quando está na chave edificante está valendo. Não há ironia.
Deste modo, Bingo oferece uma representação com antolhos. Orientado para defender uma determinada moral, o career feuilleton só ironiza e lamenta aquilo que aparece como obstáculo para o núcleo familiar de Augusto Mendes. Daí que a dualidade com um lado extraficcional (a relação de identificação com os entes historicamente reais) não é a mesma que há na diegese. Essa última dualidade se desenvolve como uma clivagem antidialética do condenável e do sacralizado. Ficamos sabendo nas informações do final que Arlindo Barreto, ex-ator da Pornochanchada e ex-Bozo, foi evangelizado (tornou-se cristão protestante). E, além disso, continua se fantasiando de palhaço, mas, desta vez, os palcos são igrejas. Um palhaço pastor. Imagine como isso poderia ser desenvolvido e também ironizado. Mas essa sátira não faz qualquer gracinha com esse desdobramento conciliador. Por isso, vemos o personagem de Brichta num típico dilema de identidade, em que limpar a maquiagem se insinua até como um ritual de humanização. Todavia, nunca vemos, de fato, algo além da máscara. Por baixo da maquiagem aparece outra. E, em relação a essa outra performance, fazem de tudo para a gente não rir e nem questionar.
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sexta-feira, 17 de maio de 2024
Arquitetura realista
(dramédia,
por Paulo Ayres
Então, reforçando a indicação de que estamos todos interligados, Gisaengshung instala uma chuva na Coreia capitalista. Não uma chuva de sapos, como na dramédia Magnolia (1999) e sua conciliação comunicativa. Bong usa o fenômeno natural para salientar o aspecto alienado da forma de sociabilidade retratada. É o momento que fazemos o percurso reverso e vamos descer, junto aos três personagens que retornam à periferia, como se escorrêssemos com a água da chuva para o lado baixo da cidade. Da visão requintada da sala rica, através da parede de vidro, fitando a criança acampar no quintal em meio à chuva, “rolamos” em direção à inundação. Nessa dinâmica, a miséria presenciada e a consciência de desigualdade social geram um impacto, na associação mental do país retratado, mais pungente do que um videoclipe açucarado de k-pop.
Como cada família nuclear é uma espécie de búnquer na sociabilidade dividida em classes, o búnquer literal que há embaixo dos ricaços eleva ao quadrado a metáfora da simbiose alienante. A cereja do bolo, aliás, é que a antiga governanta, Gook Moon-gwang (Lee Jung-eun), explica que muitos bunkers foram construídos por sul-coreanos com medo de ataques bélicos que possam vir da Coreia socialista. Um abrigo anticomunista tendo serventia apenas como um esconderijo para os males capitalistas, e fazendo com que seu hóspede secreto — caçado por agiotas, sem perspectiva de aposentadoria e vivendo de restos — chegue a um ápice da coisificação e tenha uma estranha relação de reverência e comunicação com os patrões, “deuses” do andar de cima. Ainda estamos numa dramédia lúmpen de golpe, mas essa “caverna” moderna transmite um tom sombrio que beira um mundo invertido de ficção especulativa; lembra en passant o filme estadunidense Us (2019), de Jordan Peele, outra obra realista do mesmo ano.
Logo, o recurso do “cheiro de pobre”, usado por Bong como um acelerador do confronto classista imediato e fatal, não é um dispositivo inverossímil. Adequa-se ao nível metafórico pretendido, onde até certas determinações organicamente mais básicas — uma composição com odores, tosses, volúpia etc. — estão rearranjadas socialmente na “terceira natureza”, o reino da propriedade privada, de maneira a atrair ou contrapor pessoas como “espécies” sociais em antagonismo. Junto à opressão urbano-arquitetônica, Gisaengshung percebe corpos humanos boiando ou colidindo uns nos outros em busca de um lugar ao sol... no jardim aburguesado.
- Digressão realista
- Paciência realista
- Coito coisificado
- Astúcia da razão
- Tempero naturalista
- Delírio de grandeza
- Filtro amarelo
- Blitz familista
quarta-feira, 15 de maio de 2024
Visita virtual
Doctor Sleep
por Paulo Ayres
A história é bem conhecida: Stephen King não gostou da versão realista (1980) que Stanley Kubrick fez ao adaptar para o cinema o livro edificante The Shining (1977). Além de outras diferenças, o final da obra de King tem um tom moralista, incluindo um sacrifício redentor para Jack Torrance. Vida que segue. O escritor roteirizou e produziu uma minissérie ao seu gosto em 1997 e, anos depois, publicou uma continuação do romance, Doctor Sleep (2013). Obviamente que a Warner se interessaria numa adaptação deste livro também, mas a questão que surge no projeto é que há dois universos criativos em conflito aí.
De duas principais decisões do projeto de Mike Flanagan, a primeira é acertada. Trata-se de usar o novo material literário de King, mas redirecionando esse material para o repertório audiovisual deixado por Kubrick. Sim, é o universo kubrickiano que tem prioridade artística e é expandido. Para o marketing desse novo fantasy thriller, então, foi essencial anunciar que é uma continuação do grande filme de 1980. O prestígio, a curiosidade, o reencontro com imagens e sons marcantes que deixaram referências na cultura pop. Entretanto, o desenvolvimento do enredo de Doctor Sleep revela que esse legado de peso funciona mais como adereços, que despertam certo fascínio, mas de forma distanciada e quase paralela ao foco narrativo. Ademais, outro ponto curioso é que se revela um bom tríler justamente na medida em que não depende das referências ao passado de Dan Torrance (Ewan McGregor), quando era um garotinho andando de triciclo pelos corredores do Overlook Hotel. A decisão equivocada de Flanagan é, portanto, quando satura seu filme com os elementos herdados. A parte final é a tão aguardada volta ao hotel assombrado de Kubrick, mas há algo estranho nessa visita. Por mais que a cenografia e a fotografia tenham caprichado na reconstituição do lugar, há uma sensação de distanciamento virtual, com um leve tom paródico, intensificado pelo fato de que, para a trama, é como um desvio iconográfico. Os hóspedes fantasmas aparecem juntos e, nessa espécie de museu itinerante e em despedida, o final redentor de King é escolhido.
O acúmulo de elementos fantasiosos é uma marca do escritor que Flanagan absorve na adaptação e é responsável por trocar o subgênero temático. Da ficção sobrenatural — sobre entidades do além — para uma ficção mágica que acompanha um grupo errante chamado True Knot, capturando almas de forma vampiresca. A líder Rose (Rebecca Ferguson) até tem uma presença macabra, mas é a típica vilanização que ocorre em drama edificante. Algo diferente da gradual loucura do Jack Torrance feito por Jack Nicholson. A presença infantil com o “brilho” sobrenatural é a menina Abra Stone (Kyliegh Curran), que faz uma amizade telepática com o adulto Danny, o Doctor Sleep que conforta moribundos em New Hampshire.
Um ano antes de Flanagan, Spielberg visitou o Overlook Hotel no folhetim Ready Player One (2018). Doctor Sleep não é uma ficção científica, mas transparece algo de realidade virtual na reconstrução estética do imponente hotel.
terça-feira, 14 de maio de 2024
Migração pendular
A primeira ocorrência no primeiro filme Men in Black possui a chave de interpretação do jogo metafórico desse universo. Nessa passagem, a questão da migração está salientada em primeiro plano: uma van em território norte-americano transportando imigrantes ilegais vindos do México. Há um indivíduo distinto entre aqueles aliens — palavra que indica estrangeiros, mas que, com o tempo, ficou mais identificada com extraterrestres. A agência ultrassecreta MIB se sobrepõe às autoridades e comanda a abordagem da blitz. Ela é um reflexo paródico do serviço de controle de imigração e alfândega, o ICE (antes INS). No entanto, os agentes liberam os latinos. O movimento que se dá, então, é a MIB como a representação desse departamento no subtexto, mas com certo espaço de diferenciação e autonomia no texto direto.
Men in Black é um blockbuster enxuto como poucas vezes se viu. O roteiro, inspirado nos quadrinhos de Lowell Cunningham, parece esculpido com a Navalha de Ockham, deixando só o essencial no encadeamento de frases feitas. Ademais, a encenação comediesca de Barry Sonnenfeld estampa as situações como um folhear de páginas ilustradas — o destaque nesse sentido é a imagem do Agente J (Will Smith) fazendo o parto no carro, no fundo do plano externo, e mais além está o centro de Manhattan (ainda com as Torres Gêmeas). Com efeito, há até o perigo de um apocalipse alienígena tratado como rotina de trabalho. O filme tem a cara do Agente K (Tommy Lee Jones): lacônico e blasé.
segunda-feira, 13 de maio de 2024
Definição circular
O momento em que 360 parece mais à vontade talvez seja aquele em que a câmera de Fernando Meirelles se permite repousar sobre a figura de um Jude Law nervoso demais para abordar uma prostituta num bar de hotel. Essa certa aflição é um dos sentimentos mais marcantes de boa parte da produção europeia contemporânea, em particular aquela que depende de uma estrutura de financiamento maior. O filme consistentemente precisa servir como prestação de contas, pronto a justificar sua própria relevância. Suas imagens, constantemente acuadas, marcadas por uma tensão que existe menos pelo temor da descoberta do plano seguinte e muito mais pela insegurança com seu plano anterior.
360 é um exemplar perfeito deste cinema paralisado, tão acuado pelas realidades do mercado quanto o mais vagabundo dos filmes americanos. É um filme muito menos interessado em lançar um olhar sobre Schnitzler do que em usá-lo para aplacar esta ansiedade. Dentro deste contexto, o apelo das grandes ideias é inapelável, e é para elas que 360 se entrega. O que Fernando Meirelles e seu roteirista Peter Morgan fazem é pegar a estrutura de Schnitzler e aplicar a ela uma série de observações já prontas. Saem um olhar e um grupo de personagens, e colocam-se em cena conceitos e símbolos. O filme existe numa contradição muito peculiar: um trabalho de dramaturgia completamente desinteressado por dramaturgia, submergindo o espaço cênico e o simples conceito de sequências em uma estratégia na qual as cenas só existem como ligação para o “estamos todos conectados no mundo global”, que o roteiro de Morgan emprega.
360 é um filme que ambiciona sobreviver dentro de uma ideia de contemporaneidade e a alcança perfeitamente justamente ao se assumir como sintoma dela. O especifico sempre escapa ao filme, que impregna sequência após sequência com a mesma batida de atores tentando encontrar uma dramaturgia em um material que escapa aos interesses do filme. O trabalho duro de olhar uma situação e dali extrair algo dela é substituído por algumas generalidades, nas quais Morgan e Meirelles se apoiam repetidamente. A ideia de circularidade é usada aqui como um escape fácil, que permite a Morgan passar de uma anedota para a seguinte sem jamais desenvolvê-las minimamente, confiante que o conceito e bom trabalho dos atores permitirá que o formato funcione.
O “Reigen” [1897] de Arthur Schnitzler (popularizada mundialmente pelo La Ronde [1950], de Max Ophuls) se transforma aqui num 360 perfeitamente universal e genérico — que fala a todos e, por consequência, a ninguém. Não deixa de ser informativa, neste sentido, a trajetória de Fernando Meirelles de Domésticas [2001] e Cidade de Deus [2002] — filmes que, independente, de suas maiores ou menores qualidades, nascem de locais bem específicos — para Blindness [2008] e este 360, que buscam intencionalmente se anular rumo ao mesmo lugar nenhum (explicito no primeiro filme e implícito neste novo), em que as imagens buscam reduzir todas as suas locações ao mesmo espaço genérico contemporâneo que poderia ser reproduzido num mesmo estúdio londrino.
O filme como um todo sugere uma espécie de Alejandro González Iñarritu dopado, em que as mesmas estratégias narrativas que fizeram a carreira do cineasta mexicano são reproduzidas, com a sua agressividade substituída pelos bons modos do mais caricatural cinema britânico (quando é preciso representar um assassinato, por exemplo, Meirelles não filma ação, mas somente um terceiro personagem observando à distancia). Iñarritu, claro, é o mestre maior deste cinema globalizado apreensivo, e não surpreende que 360 busque se afirmar como um subproduto do cinema dele. O filme não deixa de ser um triunfo desta ideia de mercado (se um mercado movido frequentemente pelo prestígio, mais do que por puras considerações financeiras); ao cinema, resta ser apenas um detalhe, alijado pelo grande tema que aplaca a aflição dos seus realizadores.
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