domingo, 19 de maio de 2024

Horizonte absoluto

Praia do Futuro 
 
(tragédia,
BRA/GER, 2014),
de Karim Aïnouz.
 

 

= = =
por Luiz Fernando Gallego
Críticos/2014

Praia do Futuro parte de uma mesma situação de perda, vácuo, falta. E que atinge com forte impacto dois homens: um desportista de motocross que perde seu companheiro de esporte e de viagem, e um guarda-vidas que perde, pela primeira vez, uma pessoa que estava se afogando. De alguma forma, esses dois homens que sofrem exatamente a mesma perda, vão tentar preencher o vazio deixado pela mesma morte, um com o outro. A esta perda comum, o guarda-vidas vai somar (e criar) outras: deixa sua terra natal (o Brasil) para morar na Alemanha com o motociclista que sobreviveu ao afogamento ocorrido na praia de belo nome que serve de título ao filme. E ao deixar sua pátria, Donato também não deixa pistas para sua família, estabelecendo outra perda para seu irmão mais novo, Ayrton. Anos depois, já homem feito, Ayrton vai à Alemanha em busca de Donato, com um misto de ressentimento e, claro, afeto, tendo experimentado dolorosamente sua lacuna particular deixada pelo sumiço do irmão mais velho. Em algum momento Donato, Konrad e Ayrton serão vistos andando de moto, como que tamponando de outra forma a antiga falta básica que havia sido deixada pelo morto, agora talvez preenchida por um terceiro, já em uma época em que até a relação íntima entre Donato e Konrad já acabou.

A abertura do filme é magnífica: vemos duas motos circulando pelo areal, seguindo-se o mergulho dos dois estrangeiros nas águas traiçoeiras da Praia do Futuro. As cenas de afogamento e tentativas de resgate são de tirar o fôlego. O título do “primeiro ato” (o filme se organiza em três partes com subtítulos) é aberto a múltiplas interpretações: “O Abraço do afogado” é conhecida expressão que adverte para o risco de quem pretende salvar outra pessoa que esteja se afogando; sem técnica, o pretenso salvador pode ser puxado para o fundo em vez de conseguir manter a si e ao outro (em pânico) na superfície da água. Não é o que acontece com Donato, ele não se afoga, mas de algum modo, é tragado existencialmente pelo “abraço do afogado”, não tolerando ter perdido um salvamento. E talvez não podendo deixar de viver sua atração pelo corpo masculino... mas isso o enredo não quer explicar. Os atores Wagner Moura e Clemens Schick vem minimizando em entrevistas a homossexualidade de seus personagens como fator importante para a história, o que, no entanto, é fundamental para o modo como irão levar adiante suas tentativas de suprir a perda vivida. Minimizar esse traço dos personagens também parece ser a intenção do filme quando, sem nenhuma indicação prévia da homossexualidade em Donato, joga uma cena íntima entre os dois na tela, o que não pode deixar de surpreender o público pelo modo como tal condição de Donato é revelada.

A segunda parte do filme começa a dar mostras de que as lacunas entre cenas (e épocas) fazem mais falta do que o projeto parece - intencionalmente – pretender. Isto se acentua ainda mais na terceira parte, quando o roteiro core o risco de ficar insatisfatório para o espectador. Essa forma de desenvolver os personagens já havia prejudicado em grau bem maior o filme anterior do cineasta, O Abismo Prateado [2011]. E, por mais que o diretor Karim Ainouz e seu co-roteirista Felipe Bragança pretendam fazer um modo de narrar abusando de tais elipses (elipses de momentos fundamentais no arco dos personagens) o que fica é mais a impressão de um cacoete estilístico do que algo que sirva bem à narrativa.

Voltando ao tema da homossexualidade, os roteiristas parecem até mesmo querer fazer blague com o espectador desconfortável com as motivações não explicitadas de Donato ao colocar uma leitura reducionista na boca de Ayrton quando reencontra o irmão: “Você é um viado egoísta que gosta de transar com os caras aqui do norte” (cito de memória, algo que é ainda mais cru e ressentido). Por outro lado, Wagner Moura parece tentar “explicar” um pouco mais o desconforto existencial do personagem através de seus silêncios, pausas, expressões facial e corporal. O ator quase supre o que os roteiristas escondem do personagem, mas os autores não querem mesmo deixar nada mais claro. Fugiu para viver sua homossexualidade? Quais outras questões atormentam Donato?

Como ponto a favor do filme, também a narrativa visual de Karim é das mais bonitas que bateram na tela recentemente: não é só a fotografia admirável de Ali Olay Gözkaya, mas ainda os enquadramentos elegantes e climáticos, além da edição de Isabela Monteiro de Castro. É o olhar da câmera do cineasta, enfim, que faz do filme, sob o ponto de vista estritamente cinematográfico, pungente e afetuoso. Muito mais do que o roteiro intencionalmente omisso - e que não ajuda a interpretação do personagem de Clemens Schick, o que quase não denota nenhuma mudança dos três. Já Jesuíta Barbosa também consegue dimensionar seu ‘Ayrton’ a partir de uma presença corporal forte (nesse caso, favorecida pelo roteiro quando mostra o reencontro dos dois irmãos como uma briga/abraço/luta/afeto).

Mas o modo de desenvolver o fiapo de história em que se transforma a complexidade inicial de Donato pode diminuir bastante a adesão do espectador ao que bate com tanta beleza plástica na tela. Beleza que é quase o que fica à medida que o filme avança e as informações sobre o arco do personagem se esgarçam em demasia.

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sábado, 18 de maio de 2024

Maquiagem definitiva

Bingo:
O Rei das Manhãs

(folhetim,
BRA, 2017),
de Daniel Rezende.



por Paulo Ayres

É sugestivo que a operação realizada em Bingo: O Rei das Manhãs seja justamente expor a dualidade. Isso ocorre tanto no enredo, com a enésima historinha estruturada numa lição familista, como também na referência externa, pois o comentário histórico acontece quando o espectador associa esse reflexo com os acontecimentos do mundo real. É nessa segunda linha que o folhetim oferece algum fascínio.

Sejam quais forem os motivos para evitar trabalhar com os nomes de pessoas e empresas reais, o fato é que, nesse jogo de espelhos, obtém-se a exposição parcial da essência de uma determinada passagem histórica, em sintonia com o estilo característico desse objeto temático: a televisão privada brasileira (que usa sinal público) dos anos 1980 até certa parte da década de 1990. Período de esgotamento da autocracia burguesa e a busca televisiva por audiência testa altos níveis de tendência apelativa. (É claro que hoje em dia a essência da televisão privada continua igual, mas de modo menos descarado, mais regulado, quando comparamos a esse intervalo brasileiro de um quase vale-tudo.) Pois bem, o aclamado montador Daniel Rezende — Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) etc. — estreia na direção precisamente na função de selecionar as opções mais diretas numa encenação folhetinesca. Há um certo prazer simples, mas não irrelevante, nesse semi-biopic “não oficial” (e veremos, no fim do filme, de maneira decepcionante, que ele é “oficial” sim, no sentido limitante que isso remete), ao identificarmos esses duplos enquanto reflexos dos entes reais: Pedro Bial, como um mandachuva da TV Mundial, é a cara da Rede Globo mesmo; a TVP ironiza a emissora do Silvio Santos, que busca se estabilizar no posto de segundo lugar e tem menos receio em ser apelativa. Além disso, como “na TV nada se cria, tudo se copia”, a presença do gringo estadunidense, como instância controladora, serve também para evitar a leitura viralatista desse fenômeno histórico.

O Rei das Manhãs, a Rainha dos Baixinhos... um estúdio, uma plateia de crianças, produtores e patrocinadores babando no monitor de audiência... Tudo isso parece hoje, numa época de maior disseminação de séries e filmes com um “politicamente incorreto de almanaque” — vide The Simpsons (1989–), que tem até o Krusty —, algo reconhecido e anestesiado. E é mesmo na maioria dessas expressões. O diferencial de Bingo, portanto, é a necessidade de olhar esse tema no contexto brasileiro, vinculado a esse período histórico, reconhecendo os palhaços da tela nacional e como ela nos faz de palhaços. É por isso que os nomes não fazem muita diferença na proposta apresentada nessa sátira edificante. Assim como o próprio Bozo/Bingo é uma peça substituível nas engrenagens da mídia liberal.

Entretanto, o percurso da trama nos nega a saída da caverna sensacionalista para vermos inteiramente, através do espelhamento estético, todas as alienações apresentadas como determinações históricas. Não há exatamente uma mudança no seu conteúdo; o que há é um tratamento binário com um fio romântico, presente desde o início, que vai crescendo como uma bola de neve até ficar tão grande que a fração final do folhetim histórico se concentra numa moralização lacrimosa. A cena em que o filho de Augusto Mendes (Vladimir Brichta) liga para o pai no programa ao vivo — queixando-se, com voz chorosa, que ele brinca com todas as crianças, mas não tem tempo para o próprio filho — é uma jogada digna de novela mexicana da segunda divisão. O que é a Gretchen (Emmanuelle Araújo interpretando a única personagem direta, que não é um duplo), rebolando no meio de crianças, perto desse nível de sensacionalismo? Sensacionalismo quando está na chave edificante está valendo. Não há ironia.

Deste modo, Bingo oferece uma representação com antolhos. Orientado para defender uma determinada moral, o career feuilleton só ironiza e lamenta aquilo que aparece como obstáculo para o núcleo familiar de Augusto Mendes. Daí que a dualidade com um lado extraficcional (a relação de identificação com os entes historicamente reais) não é a mesma que há na diegese. Essa última dualidade se desenvolve como uma clivagem antidialética do condenável e do sacralizado. Ficamos sabendo nas informações do final que Arlindo Barreto, ex-ator da Pornochanchada e ex-Bozo, foi evangelizado (tornou-se cristão protestante). E, além disso, continua se fantasiando de palhaço, mas, desta vez, os palcos são igrejas. Um palhaço pastor. Imagine como isso poderia ser desenvolvido e também ironizado. Mas essa sátira não faz qualquer gracinha com esse desdobramento conciliador. Por isso, vemos o personagem de Brichta num típico dilema de identidade, em que limpar a maquiagem se insinua até como um ritual de humanização. Todavia, nunca vemos, de fato, algo além da máscara. Por baixo da maquiagem aparece outra. E, em relação a essa outra performance, fazem de tudo para a gente não rir e nem questionar.

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Lista de historical feuilleton no subgênero career fiction:
[0] Primeiro tratamento: 04/09/2017.
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sexta-feira, 17 de maio de 2024

Arquitetura realista

Gisaengchung

(dramédia,
KOR, 2019),
de Bong Joon-ho.
 


por Paulo Ayres

Eu tentei expressar um sentimento específico da cultura coreana. As respostas que eu tive de diferentes audiências foram basicamente as mesmas. Essencialmente, todos nós vivemos no mesmo país chamado capitalismo.
(Bong Joon-ho)

É bem sintomático que o maior fenômeno cinematográfico dos últimos anos seja um filme que exponha as lutas de classes de forma tão acessível quanto sofisticada, porém, é mais significativo ainda que tal obra venha de uma nação que é usada como propaganda, na ideologia liberal, de nação próspera. Reza a lenda que esse país asiático é exemplar por ter sido um país terceiro-mundista e dependente que virou uma potência industrial. A Coreia capitalista, nesse sentido, é tanto uma república quanto um tipo de marca — a bandeira até lembra o símbolo da Pepsi —, uma referência positiva e vizinha do “inferno”, segundo o  imaginário do status quo. Obviamente que uma pesquisa mais aprofundada desmonta tudo isso, mas estamos falando de imagens ideológicas mais imediatas. Para abalar essa camada de senso comum é necessário um “míssil” extremamente eficaz. Gisaengchung aparece no final da década passada cumprindo essa função.
 
O que faz a dramédia de Bong Joon-ho ser um espetáculo de longo alcance é a sua flexibilidade como coisa vendável. Um vencedor da Palma de Ouro que se adapta às salas de cinema de blockbuster. Um daqueles produtos raros que consegue, de fato, uma meta em departamentos mercadológicos: o chamado sucesso de público e crítica. Desse modo, “Parasita” faz jus ao jogo de significados do seu título e acrescenta mais um: o de drama realista que parasita (ou “contraparasita”) o sistema do showbiz, penetrando, com sagacidade, os seus canais de repercussão expansiva.
 
No enredo, Gisaengshung se desdobra como um percurso de urbanidade verticalizada em que a própria cidade de Seul reflete os desníveis da casa dos ricos e vice-versa. Na dialética de Bong, ademais, cada sutileza serve para ajustar os personagens aos espaços e às novas funções empregatícias, tudo suficientemente valorizado nas sequências para revelar um cotidiano de interdependência. E é aí que está o grande ingrediente: dois núcleos familiares (na verdade, três) sobrepostos de maneira a transbordar o conteúdo familista, pois esse se mostra na sua maior fragilidade e contradição; o fetiche da família nuclear é, sempre, em algum grau, antifamília (dos outros, de fora). Na sucessão frenética de acontecimentos, o olhar do cineasta sul-coreano não elege bons e maus, alcança, isso sim, o ritmo de entradas e saídas por escadarias que revelam como a estrutura — concreta, bem concreta — é ela mesma a condição de mazelas e desumanidade. A Coreia capitalista é evidenciada enquanto uma residência maior. Saímos do buraco da vizinhança miserável (com domicílios, em parte, abaixo do nível da rua) e nos dirigimos com a família pobre de Kim Ki-taek (Song Kang-ho) para a mansão de bairro abastado, o andar de cima. Um belo plano de uma rua em subida, na periferia, indica a ligação de ambientes tão distintos quanto em dependência exploratória.
 
Bong, além disso, não tem receio de comentar seus próprios procedimentos. Kim Ki-woo (Choi Woo-shik) elogia um desenho abstrato do filho pequeno da madame Choi Yeon-gyo (Cho Yeo-jeong), enquanto Kim Ki-jung (Park So-dam) explica “psicologicamente” o significado de alguns desenhos para a mesma. Ironizar a arte niilista e a psicologia de botequim, aqui, serve para ironizar a metáfora que não tem os pés no chão, que flutua na arbitrariedade. Essa crime dramedy, diferentemente, se interessa por degraus concretos para montar a estrutura metafórica. O próprio arquiteto da casa luxuosa é referenciado em diálogo. A arquitetura da casa é opressiva em certo sentido por ser uma objetivação em contexto profundamente alienado; e o mesmo vale para o conjunto urbano da qual aquela casa é apenas um elemento. Complementando essa abordagem, Chung-sook (Jang Hye-jin), a mãe pobre e nova governanta, reflete que a gentileza e simpatia dos ricos têm uma base material de conforto por trás e, por consequência, concluímos que o mesmo vale para a trambicagem dos pobres em questão. Dito de outro modo, Bong salienta, com tais argumentos, que enquanto os degraus de disputa por sobrevivência existirem os atos de empurrões escada a baixo continuarão, independente de quem são os agentes singulares envolvidos.

Então, reforçando a indicação de que estamos todos interligados, Gisaengshung instala uma chuva na Coreia capitalista. Não uma chuva de sapos, como na dramédia Magnolia (1999) e sua conciliação comunicativa. Bong usa o fenômeno natural para salientar o aspecto alienado da forma de sociabilidade retratada. É o momento que fazemos o percurso reverso e vamos descer, junto aos três personagens que retornam à periferia, como se escorrêssemos com a água da chuva para o lado baixo da cidade. Da visão requintada da sala rica, através da parede de vidro, fitando a criança acampar no quintal em meio à chuva, “rolamos” em direção à inundação. Nessa dinâmica, a miséria presenciada e a consciência de desigualdade social geram um impacto, na associação mental do país retratado, mais pungente do que um videoclipe açucarado de k-pop.

Como cada família nuclear é uma espécie de búnquer na sociabilidade dividida em classes, o búnquer literal que há embaixo dos ricaços eleva ao quadrado a metáfora da simbiose alienante. A cereja do bolo, aliás, é que a antiga governanta, Gook Moon-gwang (Lee Jung-eun), explica que muitos bunkers foram construídos por sul-coreanos com medo de ataques bélicos que possam vir da Coreia socialista. Um abrigo anticomunista tendo serventia apenas como um esconderijo para os males capitalistas, e fazendo com que seu hóspede secreto — caçado por agiotas, sem perspectiva de aposentadoria e vivendo de restos — chegue a um ápice da coisificação e tenha uma estranha relação de reverência e comunicação com os patrões, “deuses” do andar de cima. Ainda estamos numa dramédia lúmpen de golpe, mas essa “caverna” moderna transmite um tom sombrio que beira um mundo invertido de ficção especulativa; lembra en passant o filme estadunidense Us (2019), de Jordan Peele, outra obra realista do mesmo ano.

Logo, o recurso do “cheiro de pobre”, usado por Bong como um acelerador do confronto classista imediato e fatal, não é um dispositivo inverossímil. Adequa-se ao nível metafórico pretendido, onde até certas determinações organicamente mais básicas — uma composição com odores, tosses, volúpia etc. — estão rearranjadas socialmente na “terceira natureza”, o reino da propriedade privada, de maneira a atrair ou contrapor pessoas como “espécies” sociais em antagonismo. Junto à opressão urbano-arquitetônica, Gisaengshung percebe corpos humanos boiando ou colidindo uns nos outros em busca de um lugar ao sol... no jardim aburguesado.
 
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quarta-feira, 15 de maio de 2024

Visita virtual

Doctor Sleep

(tríler,
USA, 2019),
de Mike Flanagan.
 


por Paulo Ayres

A história é bem conhecida: Stephen King não gostou da versão realista (1980) que Stanley Kubrick fez ao adaptar para o cinema o livro edificante The Shining (1977). Além de outras diferenças, o final da obra de King tem um tom moralista, incluindo um sacrifício redentor para Jack Torrance. Vida que segue. O escritor roteirizou e produziu uma minissérie ao seu gosto em 1997 e, anos depois, publicou uma continuação do romance, Doctor Sleep (2013). Obviamente que a Warner se interessaria numa adaptação deste livro também, mas a questão que surge no projeto é que há dois universos criativos em conflito aí.

De duas principais decisões do projeto de Mike Flanagan, a primeira é acertada. Trata-se de usar o novo material literário de King, mas redirecionando esse material para o repertório audiovisual deixado por Kubrick. Sim, é o universo kubrickiano que tem prioridade artística e é expandido. Para o marketing desse novo fantasy thriller, então, foi essencial anunciar que é uma continuação do grande filme de 1980. O prestígio, a curiosidade, o reencontro com imagens e sons marcantes que deixaram referências na cultura pop. Entretanto, o desenvolvimento do enredo de Doctor Sleep revela que esse legado de peso funciona mais como adereços, que despertam certo fascínio, mas de forma distanciada e quase paralela ao foco narrativo. Ademais, outro ponto curioso é que se revela um bom tríler justamente na medida em que não depende das referências ao passado de Dan Torrance (Ewan McGregor), quando era um garotinho andando de triciclo pelos corredores do Overlook Hotel. A decisão equivocada de Flanagan é, portanto, quando satura seu filme com os elementos herdados. A parte final é a tão aguardada volta ao hotel assombrado de Kubrick, mas há algo estranho nessa visita. Por mais que a cenografia e a fotografia tenham caprichado na reconstituição do lugar, há uma sensação de distanciamento virtual, com um leve tom paródico, intensificado pelo fato de que, para a trama, é como um desvio iconográfico. Os hóspedes fantasmas aparecem juntos e, nessa espécie de museu itinerante e em despedida, o final redentor de King é escolhido.

O acúmulo de elementos fantasiosos é uma marca do escritor que Flanagan absorve na adaptação e é responsável por trocar o subgênero temático. Da ficção sobrenatural — sobre entidades do além — para uma ficção mágica que acompanha um grupo errante chamado True Knot, capturando almas de forma vampiresca. A líder Rose (Rebecca Ferguson) até tem uma presença macabra, mas é a típica vilanização que ocorre em drama edificante. Algo diferente da gradual loucura do Jack Torrance feito por Jack Nicholson. A presença infantil com o “brilho” sobrenatural é a menina  Abra Stone (Kyliegh Curran), que faz uma amizade telepática com o adulto Danny, o Doctor Sleep que conforta moribundos em New Hampshire.

Um ano antes de Flanagan, Spielberg visitou o Overlook Hotel no folhetim Ready Player One (2018). Doctor Sleep não é uma ficção científica, mas transparece algo de realidade virtual na reconstrução estética do imponente hotel.

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Lista de fantasy thriller no subgênero magical fiction:
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terça-feira, 14 de maio de 2024

Migração pendular

Men in Black 
 
(comédia,
USA, 1997),
de Barry Sonnenfeld.
 


por Paulo Ayres

A primeira ocorrência no primeiro filme Men in Black possui a chave de interpretação do jogo metafórico desse universo. Nessa passagem, a questão da migração está salientada em primeiro plano: uma van em território norte-americano transportando imigrantes ilegais vindos do México. Há um indivíduo distinto entre aqueles aliens — palavra que indica estrangeiros, mas que, com o tempo, ficou mais identificada com extraterrestres. A agência ultrassecreta MIB se sobrepõe às autoridades e comanda a abordagem da blitz. Ela é um reflexo paródico do serviço de controle de imigração e alfândega, o ICE (antes INS). No entanto, os agentes liberam os latinos. O movimento que se dá, então, é a MIB como a representação desse departamento no subtexto, mas com certo espaço de diferenciação e autonomia no texto direto.

Nesse sentido, ao lidar diretamente com essa camada primária da imigração, essa sátira edificante está, logo de início, recusando explicitamente o caminho imediato e espinhoso da ideologia xenofóbica. Durante todo o seu desenrolar, o enredo pisa entre ovos nessa proposta delicada de metáfora que, ao mesmo tempo, referencia e se distancia. É justamente esse movimento arriscado que, por um lado, dá vitalidade à essa trama redonda e, por outro, determina as limitações no espelhamento do contexto histórico, pois, querendo ou não, também comenta o nosso mundo.

Men in Black é um blockbuster enxuto como poucas vezes se viu. O roteiro, inspirado nos quadrinhos de Lowell Cunningham, parece esculpido com a Navalha de Ockham, deixando só o essencial no encadeamento de frases feitas. Ademais, a encenação comediesca de Barry Sonnenfeld estampa as situações como um folhear de páginas ilustradas — o destaque nesse sentido é a imagem do Agente J (Will Smith) fazendo o parto no carro, no fundo do plano externo, e mais além está o centro de Manhattan (ainda com as Torres Gêmeas). Com efeito, há até o perigo de um apocalipse alienígena tratado como rotina de trabalho. O filme tem a cara do Agente K (Tommy Lee Jones): lacônico e blasé.
 
Contudo, o aspecto cool também é responsável pelas insuficiências. Afinal, essas figuras de gravatas e ternos pretos, elevadas a ícones cinematográficos, não estão no contexto sem maniqueísmo de Pulp Fiction (1994) ou no contexto da vilania digital de The Matrix (1999). Ou seja, o problema nem é que os agentes da MIB matem e torturem às vezes — até porque as agências estatais do mundo liberal-democrático são capazes disso e muito mais —, mas, como era de se esperar numa sátira desse tipo, há a validação romantizada desse serviço. Se isso se dá naquele curioso processo comentado de identidade e não identidade (a agência não é subordinada a nenhum governo), termina por repousar na identidade, pois, de uma forma ou de outra, a MIB afirma o modo de vida estadunidense, ao receber e monitorar os aliens de acordo com os costumes e as leis do local.

A persona non grata que causa distúrbios em Nova York é denominada como um bug. Porém, diferente dos incontáveis bugs de Starship Troopers (1997), é um ser social. A roupagem (literalmente, roupagem) de Edgar (Vincent D'Onofrio) simboliza o próprio estatuto de Men in Black, onde os disfarces das criaturas variadas indicam a adaptação obrigatória ao ambiente cotidiano, e o invasor é aquele que mal consegue disfarçar a monstruosidade. Sonnenfeld, perito “anônimo”, fez antes dois aprazíveis The Addams Family (1991-1993) demonstrando um quê burtoniano na simpatia pelo grotesco e pelo outsider, todavia, nesta boa comédia de ficção científica, tal tendência comparece de forma subdesenvolvida, retraída. Não é sem razão que a personagem mais cativante seja a médica-legista Laurel Weaver (Linda Fiorentino), que, com morbidez e esperteza, investiga além das aparências dos corpos (mortos), isto é, o movimento inverso dos protocolos de camuflagem e adaptação. Por um momento, ela até parece uma protagonista solitária sendo visitada por agentes perversos à la Agente Smith, mas logo vem os flashs do desnauralizador apagar tal digressão. Um filme tão direto ao ponto apara todas as suas arestas. Espetáculo cômico contido numa austeridade narrativa.

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Lista de sci-fi comedy no subgênero space fiction:
[0] Primeiro tratamento: 17/06/2021.
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segunda-feira, 13 de maio de 2024

Definição circular

360 
 
(tragédia,
UK/FRA/AUT/BRA, 2011),
de Fernando Meirelles.



= = =
por Filipe Furtado
Cinética/2012
 
O mundo como um estúdio londrino

O momento em que 360 parece mais à vontade talvez seja aquele em que a câmera de Fernando Meirelles se permite repousar sobre a figura de um Jude Law nervoso demais para abordar uma prostituta num bar de hotel. Essa certa aflição é um dos sentimentos mais marcantes de boa parte da produção europeia contemporânea, em particular aquela que depende de uma estrutura de financiamento maior. O filme consistentemente precisa servir como prestação de contas, pronto a justificar sua própria relevância. Suas imagens, constantemente acuadas, marcadas por uma tensão que existe menos pelo temor da descoberta do plano seguinte e muito mais pela insegurança com seu plano anterior.

360 é um exemplar perfeito deste cinema paralisado, tão acuado pelas realidades do mercado quanto o mais vagabundo dos filmes americanos. É um filme muito menos interessado em lançar um olhar sobre Schnitzler do que em usá-lo para aplacar esta ansiedade. Dentro deste contexto, o apelo das grandes ideias é inapelável, e é para elas que 360 se entrega. O que Fernando Meirelles e seu roteirista Peter Morgan fazem é pegar a estrutura de Schnitzler e aplicar a ela uma série de observações já prontas. Saem um olhar e um grupo de personagens, e colocam-se em cena conceitos e símbolos. O filme existe numa contradição muito peculiar: um trabalho de dramaturgia completamente desinteressado por dramaturgia, submergindo o espaço cênico e o simples conceito de sequências em uma estratégia na qual as cenas só existem como ligação para o “estamos todos conectados no mundo global”, que o roteiro de Morgan emprega.

360 é um filme que ambiciona sobreviver dentro de uma ideia de contemporaneidade e a alcança perfeitamente justamente ao se assumir como sintoma dela. O especifico sempre escapa ao filme, que impregna sequência após sequência com a mesma batida de atores tentando encontrar uma dramaturgia em um material que escapa aos interesses do filme. O trabalho duro de olhar uma situação e dali extrair algo dela é substituído por algumas generalidades, nas quais Morgan e Meirelles se apoiam repetidamente. A ideia de circularidade é usada aqui como um escape fácil, que permite a Morgan passar de uma anedota para a seguinte sem jamais desenvolvê-las minimamente, confiante que o conceito e bom trabalho dos atores permitirá que o formato funcione.

O “Reigen” [1897] de Arthur Schnitzler (popularizada mundialmente pelo La Ronde [1950], de Max Ophuls) se transforma aqui num 360 perfeitamente universal e genérico — que fala a todos e, por consequência, a ninguém. Não deixa de ser informativa, neste sentido, a trajetória de Fernando Meirelles de Domésticas [2001] e Cidade de Deus [2002] — filmes que, independente, de suas maiores ou menores qualidades, nascem de locais bem específicos — para Blindness [2008] e este 360, que buscam intencionalmente se anular rumo ao mesmo lugar nenhum (explicito no primeiro filme e implícito neste novo), em que as imagens buscam reduzir todas as suas locações ao mesmo espaço genérico contemporâneo que poderia ser reproduzido num mesmo estúdio londrino.

O filme como um todo sugere uma espécie de Alejandro González Iñarritu dopado, em que as mesmas estratégias narrativas que fizeram a carreira do cineasta mexicano são reproduzidas, com a sua agressividade substituída pelos bons modos do mais caricatural cinema britânico (quando é preciso representar um assassinato, por exemplo, Meirelles não filma ação, mas somente um terceiro personagem observando à distancia). Iñarritu, claro, é o mestre maior deste cinema globalizado apreensivo, e não surpreende que 360 busque se afirmar como um subproduto do cinema dele. O filme não deixa de ser um triunfo desta ideia de mercado (se um mercado movido frequentemente pelo prestígio, mais do que por puras considerações financeiras); ao cinema, resta ser apenas um detalhe, alijado pelo grande tema que aplaca a aflição dos seus realizadores.

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domingo, 12 de maio de 2024

Ética empresarial

Casseta & Planeta:
 Seus Problemas Acabaram!

(farsa,
BRA, 2006),
de José Lavigne.
 


por Paulo Ayres

O Casseta & Planeta teve três passagens pelo cinema — se contar As Aventuras de Agamenon, o Repórter (2012) como parte das expressões do grupo humorístico — e, entre os três filmes, Casseta & Planeta: Seus Problemas Acabaram! é o que tem mais a cara do programa televisivo (1992–2010) da Globo. Igual, mas diferente. A corporação Organizações Tabajara, das propagandas mirabolantes na televisão, aparece em outro ângulo, o do banco dos réus. A metalinguagem dá um giro e o objeto satírico sai da posição de ferramenta e entra na posição de matéria-prima. E o jeito que isso ocorre, sobre até que ponto essa turma está disposta a satirizar esse empresariado ficcional, revela o grau de ousadia e a limitação romântica do projeto.

Por mais que seja um rascunho bem estilizado, pensando para acoplar esquetes e fazer desfilar alguns personagens conhecidos da televisão — Chicória Maria, a dupla policial ianque Fucker & Sucker, Seu Creysson como vilão... —, o roteiro de Seus Problemas Acabaram! tem a boa ideia de problematizar um dos pontos essenciais da identidade do grupo e da arte no tempo dos monopólios culturais. A burguesia das Organizações Tabajara continua desconhecida, sem rosto, mas ela aciona sua defesa perante as acusações de consumidores. O filme de José Lavigne não coloca a publicidade ficcional em primeiro plano, e sim advogados mercenários com gel no cabelo e publicitários paulistanos com rabo de cavalo. Nesse sentido, é curioso que o protagonista não seja um dos sete humoristas do grupo, mas o advogado Botelho Pinto (Murilo Benício) que conduz a acusação contra a megaempresa.
 
No revezamento de papeis, o que interessa é manter a sensação de enredo unitário em meio aos pequenos blocos costurados. Maria Paula é deslocada para uma posição central de mocinha, enquanto Bussunda e os demais representam a descontinuidade na continuidade. Entre os recursos da sátira edificante, um desenho animado, bem animado — no sentido da alta mobilidade e do capricho dessa animação.

A farsa metalinguística do Casseta & Planeta sempre apostou num tipo de humor em contato direto com o senso comum, absorvendo certos estereótipos de maneira pouco criteriosa. Nessa colagem tosca está sua força e sua fraqueza, passando por referências criativas até piadas maliciosas de quinta série. Há uma paródia de Cidade de Deus (2002) no filme. Embora seja até engraçada a breve participação do Zé Pequeno e da galinha fujona, o cinema brasileiro como tópico de conversa serve como exemplo da superficialidade com que as coisas são pensadas. Talvez os redatores recorram a taxistas para se informar, de fato. Quando falava de política no programa o grupo transparecia, às vezes, uma visão liberalóide. A ausência desse assunto em Seus Problemas Acabaram!, então, contribui para direcionar a atenção para as contradições da iniciativa privada como força dominante na sociedade capitalista. Outra megaempresa fictícia, o Grupo Capivara, surge como reflexo da concorrência monopolista. Serve também como espantalho para dividir a alta burguesia em culpados e inocentes.
 
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