terça-feira, 17 de junho de 2025

Concorrência desleal

 Plankton: The Movie
  
(farsa,
USA, 2025)
de Dave Needham.
 


por Paulo Ayres

Depois de um longa estrelado por Sandy Cheeks — Saving Bikini Bottom: The Sandy Cheeks Movie (2024) —, o antagonista Plankton (voz de Mr. Lawrence) protagoniza um filme próprio na cidade submersa de Bikini Bottom. SpongeBob SquarePants (voz de Tom Kenny) é requisitado no enredo como um psiquiatra que utiliza hipnose para desvendar acontecimentos passados na vida de Plankton. Com esse coadjuvante de peso, personagens como Patrick Star e Squidward Tentacles possuem um espaço menor ainda. A farsa dirigida por Dave Needham tem como assunto duas camadas de desenvolvimento: uma bizarra love story entre o plâncton antropomórfico e sua esposa-computador Karen (voz de Jill Talley); e, junto a isso, a velha concorrência comercial entre os restaurantes Chum Bucket e Krusty Krab — esse último pertence ao Mr. Krabs.
 
Assim como o filme de 2024, Plankton: The Movie opta pelo gráfico 3D sem muitos retoques, visando deixar os traços com o volume cheio. Em Sponge Out of Water (2015), por exemplo, a versão tridimensional ganha vida fora do mar. Plankton: The Movie é uma sátira edificante que assume essa proposta do começo ao fim. Nesse sentido, a monstruosidade tecnológica de Karen ganha mais imponência no desenho com esse estilo.
 
Karen é uma máquina de empatia que retira o respectivo chip da empatia, restando a fúria e a megalomania depois de romper o relacionamento com Plankton. O vilão faz uma aliança tática com SpongeBob para impedir os planos catastróficos de Karen e salvar a cidade de Bikini Bottom e o litoral. As personagens femininas e coadjuvantes desse mundo aquático surgem como um super grupo de amigas. Tentam em vão contornar e apaziguar a situação. Plankton: The Movie tira sarro dessa intenção superficial.
 
O ponto de grande embate se dá na estrutura das relações de trabalho. Não é sem razão que a vitória contra aquele capital monopolista, em sentido figurado, acontece com SpongeBob deixando o papel de psiquiatra e assumindo a sua velha ocupação assalariada de operário culinário. Ele corta inúmeras batatas que servem de fonte de energia para Karen, desestabilizando o aparato eletrônico enorme.
 
Rivalidade presente desde a série televisiva (1999-), Plankton tenta conseguir a fórmula secreta do lanche Krabby Patt, vendido no restaurante fast food que é rival. No filme, a espelunca Chum Bucket recebe uma reformulação exitosa de Karen. Plankton desaprova; o que leva à separação do casal farsesco e ao desdobramento da trama. A deslealdade de Plankton é, ironicamente, cheia de planos mirabolantes, mas não enxerga o planejamento a longo prazo com aquele olho solitário.
 
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segunda-feira, 16 de junho de 2025

Lesão corporal

  Martyrs 
 
(tríler,
FRA/CAN, 2008)
de Pascal Laugier.
 


por Paulo Ayres

No meio do filme Martyrs há uma pilha de cadáveres jogados num buraco do quintal. Vala comum de um tríler incomum. A obra de Pascal Laugier enterra a família que vivia na casa e duas moças que serviram de experimento de tortura em períodos e lugares diferentes. A organização, de que pouco se revela, realiza sessões de lesão corporal com pessoas sequestradas e escondidas. O objetivo é que haja algumas cobaias humanas que deixem de se perceber como vítimas e incorporem a postura de mártires em certo sentido religioso. Com isso, presenciando um êxtase místico, a associação secreta almeja conhecer alguma coisa do suposto outro mundo após a morte. Uma seita centrada na curiosidade sobrenatural.
 
Abusando da violência gráfica e de corpos bastante lesionados, Martyrs tinha tudo para cair na arte degradante que se concentra em tortura física e vingança. Entretanto, a motivação do grupo, liderado pela Mademoiselle (Catherine Bégin), injeta certa contradição irônica nessa religiosidade experimental com cobaias. Além disso, quando se “deixa levar”, a garota Anna Assaoui (Morjana Alaoui) eleva o enredo ao céu religioso refletido em suas pupilas. Martyrs é, em resumo, um bom drama edificante que abusa do sacrifício redentor. Litros de sangue e horror corporal em encenação dramática estão lá para entrar na lista de filmes perturbadores, mas também há a limpeza simbólica do local e de corpos e, por fim, a alma lavada — os créditos finais, nesse sentido, através da simulação documental retorna ao vínculo afetivo das duas amigas que convivem desde pequenas.
 
Mesmo que possa se abrir uma leitura mais seca de que a morta fantasmagórica, que aparece para Lucie Jurin (Mylène Jampanoï), é apenas parte de delírios de automutilação, o componente sobrenatural é ressaltado no testemunho religioso de Anna. Antes disso, surgindo praticamente como uma falsa protagonista, Lucie realiza uma chacina de grande impacto, interrompendo o café da manhã de uma família — essa sequência familiar, por sua vez, também tem algo de falso protagonismo. Premissas narrativas que não se cumprem, de maneira planejada por Laugier, aumentando a sensação de desorientação. Há cortes na carne humana e cortes de perspectiva nessa ficção fantasiosa.
 
A refilmagem estadunidense lançada em 2015 é uma versão apagada. É diferente de Martyrs, o drama franco-canadense, que se imprime em estética chocante, deixando sua marca no espectador ao fim da fruição da obra.

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sábado, 14 de junho de 2025

Patrimônio cultural

A Real Pain
 
(dramédia,
USA/POL, 2024)
de Jesse Eisenberg.
 

 
por Paulo Ayres
 
Apesar de a fórmula poder ser resumida como um filme discreto sobre um personagem indiscreto, A Real Pain, na sua simplicidade, consegue aprofundar a trama se mantendo num trajeto turístico corriqueiro. Na verdade, Benji Kaplan (Kieran Culkin) até pode ser a força movente que sacode um pouco os protocolos da viagem à Polônia, mas também é objeto de um olhar que, dentro e fora da tela, assume a posição central. Jesse Eisenberg é David Kaplan, o primo responsável e introvertido do enredo, e também escreve e dirige a obra. A Real Pain é Eisenberg/David tentando entender o primo e o desenvolvimento histórico feito de ações e reações diversas.
 
Sobrevivente de uma tentativa de suicídio, Benji apresenta uma personalidade inquieta e debochada, alternando de maneira binária e bem intensa entre ser insensível e sensível demais.
 
Imagine um filme em que o clímax — se é que há um — é colocar uma pedra em frente a porta de uma casa velha, indicando um “estive aqui” de tradição judaica, mas, no caso, também de turismo chato. Bem, esse é o tipo de filme que A Real Pain busca ser e, dentro da insuficiência de drama edificante, cumpre de modo eficaz sua intenção. A ficção histórica percorre um caminho de chatice conduzida por um guia turístico, James (Will Sharpe), e realiza breves suspensões da monotonia feitos por Benji, e seguidas e comentadas por David. Eisenberg, nesse movimento, aprofunda a reflexão familiar com o tema histórico da visita a um campo de concentração que se tornou um museu polonês. A questão paira sobre como as adversidades e as dores na sociedade se apresentam em graus variados e como isso molda diferentemente os indivíduos sociais. O desfecho conciliatório, aliás, possui uma fina ironia em que a dor de um tapa na cara gera uma boa sensação em Benji, trazendo ele ao presente de atenção plena e deixando, momentaneamente, os pensamentos intrusivos que alimentam mágoas e ar blasé.
 
A Real Pain é um filme familista, mas que olha com curiosidade para a figura do primo (ou tio) esquisito e solitário. É só comparar com Little Miss Sunshine (2006), pois A Real Pain também é a dramédia americana fofa da temporada. Lá o tio destoante, e que também tentou se matar anteriormente, é integrado ao núcleo duro e inabalável com problemas superficiais. Em A Real Pain, assim como Juno (2007), outra dramédia de costumes dessa linhagem, a excentricidade resiste com mais força.

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quinta-feira, 12 de junho de 2025

Ponto de parada

 The Room Next Door

(tragédia,
ESP, 2024)
de Pedro Almodóvar.



por Paulo Ayres

Dramas que refletem sobre a inevitabilidade da morte correm o risco de se contaminar com o dilema de determinada personagem moribunda e se estagnar num olhar contemplativo. Sem cair no niilismo artístico e nem no romantismo barato, Pedro Almodóvar faz seu longa mais introspectivo e discreto, mas não evita certo cinema memento mori. Tudo em The Room Next Door é feito para que a encenação tragediesca coloque a dupla de grandes atrizes num foco de retrospectiva e ensaio de despedida. Um enredo que se desenvolve a conta-gotas, mas sem passividade. Ainda que o aspecto da ação apareça num retrovisor de memórias, "La Habitación de al Lado" reflete bem a dor que uma paciente terminal, Martha (Tilda Swinton), transmite ao seu redor ao se sentir definhando com o passar dos dias.
 
Eutanásia? Suicídio? Crime perfeito? Não importa tanto a classificação desse plano específico. E se há as consequências policial e jurídica, após a morte, é para que, através da figura da grande amiga, Ingrid (Julianne Moore), surja nesse espelhamento estético também certa dificuldade do conjunto social em lidar com esse tema polêmico. Isso aí na última parte. Almodóvar se concentra naquela casa luxuosa e afastada da cidade, com arquitetura chamativa cheia de retas, abrigando uma reta final. A antecipação fúnebre não parece mero capricho de gente abastada, mas uma possibilidade aberta diante da perda de motivação para a personagem. A ex-correspondente de guerra conhece bem, de perto, o lado mais bárbaro da humanidade. Junto das dores físicas e dos efeitos colaterais do tratamento oncológico, as dores emocionais são potencializadas pelo envelhecimento natural e pelo efeito da doença. Longe do palco bélico e miserável do Terceiro Mundo, lugar de sua carreira profissional, e longe dos relacionamentos afetivo-sexuais de breve duração, resta o ombro de Ingrid. A amiga traz um tipo de pacote humanista contendo um pouco de psicoterapia informal, companhia para ver uma farsa de Buster Keaton na televisão e alguma assistência na morte assistida. Por isso, na economia de sua marca característica, Almodóvar faz uma dosagem do contraste de cores fortes, predominando a assepsia e a paisagem ensolarada — até vem a neve no fim, mas com a presença da filha de Martha, Michelle. De dura já basta a vida de cada personagem.
 
O quarto de Martha não é onde se desenvolve o drama edificante. Quando ela entra no local, a perspectiva do espectador permanece com Ingrid, sem saber quando a outra cumprirá o combinado. Nas saídas de Ingrid, duas sequências que têm alguma conexão. Primeiramente, o desabafo desanimado com o personal trainer. Depois, no encontro com Damian (John Turturro), a mulher muda de postura: diante da fala pessimista do amigo, apontando o aumento da crise climática, do liberalismo econômico e da extrema direita, ela pondera sobre se manter firme em meio aos problemas pessoais e os de escala global.
 
Um momento que remete ao melhor da criatividade de Almodóvar acontece, curiosamente, num flashback com um casal na estrada sem ligação direta com a trajetória das personagens. A passagem tem algo de inquietante sobre o homem que, aparentemente, quer salvar vidas num incêndio residencial perto da rodovia. Esse é o tipo de contradição sugestiva que faltou ocorrer na cenografia principal.  
 
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quarta-feira, 11 de junho de 2025

Voo inaugural

 Wicked
 
(comédia,
USA, 2024)
de Jon M. Chu.
 
 

por Paulo Ayres 
 
Os filmes mais recentes sobre Maleficent (2014-2019) e Cruella de Vil (2021) são exemplos de releituras de histórias colocando uma vilã bem conhecida no protagonismo. Isso, de fato, aumenta a complexidade de enredos que possuem o maniqueísmo acentuado, demonstrando que determinadas sátiras edificantes, mesmo voltadas para o público infantil ou infantojuvenil, podem ser menos unilaterais. Seguindo essa tendência e baseado na peça teatral (2003) de Stephen Schwartz e Winnie Holzman, Wicked é a experiência mais desenvolvida nessa fronteira de aprofundamento. Elphaba Thropp (Cynthia Erivo), a Bruxa Má do Oeste, tem a oportunidade de ter a sua história de vida em foco para indicar como as contradições da realidade objetiva estão além do pensamento preto no branco. No caso, o verde, que reveste uma atriz negra, traz o peso da diferença discriminada na universidade de magia. Solitária, tanto no deslocamento social quanto na falta de gente de pele de cor igual, ela se enxerga na empatia com um grupo social cada vez mais marginalizado naquele reino. Sua revolta tem justificação na trama. O que ela fará na continuação de 2025, ou melhor, o que farão com ela, é outro ponto.
 
Não se pode negar a ousadia de Wicked invertendo o ponto de vista. Contudo, dentro das limitações da proposta alegórica e romântica, é um momento de maior impacto, nessa primeira totalidade, o início do filme, quando uma sorridente Glinda (Ariana Grande) aparece toda fofa e cínica participando da comemoração da morte da Bruxa Má do Oeste e dizendo que a conhecia. É verdade que há também um choque narrativo com a descoberta que o Mágico de Oz (Jeff Goldblum) é um canalha sem poderes mágicos e que a honorável mestre escolar Madame Morrible (Michelle Yeoh) é que é a bruxa má, ou simplesmente “bruxa” no sentido pejorativo. Porém, essa virada, com alegoria sobre apartheid e perseguição política de um grupo social, inverte tanto a premissa original que o grande voo de Elphaba — com a canção “Defying Gravity” — se mostra como uma batalha vencida pelo lado do bem.
 
A metáfora utiliza os animais como vítimas de preconceito. Eles são antropomórficos em certa medida. Os corpos não são humanoides, mas possuem consciência de ser social. O professor de história Dr. Dillamond (voz de Peter Dinklage) indica uma inteligência desvalorizada e é o ponto de identificação de Elphaba. A epic comedy, nesse sentido, usa o repertório de canções como ilustrações episódicas da crescente interação entre Elphaba e Glinda, emergindo uma ruptura radical da primeira que impede algo nos moldes manjados de integração; uma estudante nerd superando barreiras e conquistando popularidade e um par amoroso, no caso Fiyero Tigelaar (Jonathan Bailey). É compreensível que seja Glinda que enxergue um caminho reluzente na maquete. A ficção fantasiosa de Jon M. Chu, por outro lado, não trilha esse caminho de tijolos dourados e isso é um grande feito desse primeiro filme. Obrigado, o próximo.
 
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terça-feira, 10 de junho de 2025

Ângulo morto

 Hellboy:
The Crooked Man

(tríler,
USA, 2024)
de Brian Taylor.
 
  
por Paulo Ayres

O mais recente filme do Hellboy é diferente de tudo o que se costuma fazer com esse diabo heroico. Mais uma vez a tendência se confirma: dramatizar super-heróis das HQs é tarefa complicada e os bons dramas com esse material são raros — talvez dê para contar nos dedos de uma mão. Assim como o personagem tem uma mão comum e outra esdrúxula, uma versão trileresca requer uma habilidade de manipulação narrativa menos brucutu.

Ironicamente, The Crooked Man é o filme mais “reto” com o personagem, tanto por ser uma adaptação dramática, como por ser bem comportado para seu contexto de encenação. Antes dessa obra foram feitos cinco folhetins audiovisuais: duas animações — Sword of Storms (2004) e Blood and Iron (2007) — e três em live-action — Hellboy (2004), The Golden Army (2008) e Hellboy (2019). O tríler mágico dirigido por Brian Taylor almeja outra coisa. A seriedade cênica, a atmosfera meio onírica, a fotografia mais acinzentada, o clima de desorientação com direito a um ângulo de baixo para cima com árvores imponentes. É uma floresta amaldiçoada em 1959 que traz um pacote reconhecível de filtro horrorífico. Saídos de um trem, Hellboy (Jack Kesy) e Bobbie Jo Song (Adeline Rudolph) caminham por essa região mal-assombrada habitada por uma comunidade de bruxas e pelo demônio torto que está no título do filme, Crooked Man (Martin Bassindale).
 
Se o todo não se sustenta, não significa que não haja passagens consideráveis como um breve espetáculo estético, mesmo com a aparência de passagens “soltas”. A personagem Cora Fisher (Hannah Margetson) é a que proporciona os momentos mais destacados. Em parte, por demonstrar uma profundidade aflitiva, em parte por ter seu corpo como veículo que conduz efeitos visuais. Preenchimento literal, na trama, e, depois, como suspensão contemplativa em computação gráfica, com uma serpente entrando e saindo do seu corpo — curiosamente é a outra bruxa, a vilã Effie Kolb (Leah McNamara), que é conhecida como ninfomaníaca, embora o filme só a deixe com a fama mesmo, sem acentuar o elemento erótico.
 
O criador de Hellboy, Mike Mignola, participa da produção de The Crooked Man como corroteirista. Independente se aprovou o resultado ou não, sua criatura serve de exemplo de um trem desgovernado que esse reboot levou para a contramão da DC no cinema. Acertadamente, a Warner levou sua subsidiária de super-heróis do drama para a sátira — inclusive, está para estrear mais uma versão folhetinesca do Superman (2025). Enquanto isso, essa mão pesada (e vermelha), mesmo com certo capricho, destoa como drama edificante de superfície.
 
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Lista de fantasy thriller no subgênero magical fiction:
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segunda-feira, 9 de junho de 2025

Lugar nenhum

Riding in Cars with Boys 
 
(folhetim,
USA, 2001)
de Penny Marshal.
 

 
por Paulo Ayres

No vaivém de flashbacks, Riding in Cars with Boys é mais interessante como sátira sobre a gravidez na adolescência do que um panorama do fracasso parcial do american dream, espremido em condições objetivas de exploração e precariedade. A questão patriarcal está lá e a relação de Beverly Donofrio (Drew Barrymore) com os boys da sua vida — o pai, o marido, o filho e o amigo — não implica em maniqueísmo. A complexidade do folhetim histórico, todavia, se concentra no olhar crítico às tradições mofadas das relações familiares entre as gerações. As adversidades de uma sociabilidade competitiva e coisificadora, nesse sentido, aparecem mais como um efeito da vida que sai do controle. E por mais que a diretora Penny Marshal acerte em não reduzir Bev a uma mártir exemplar, por outro lado, é difícil não evitar um tom triunfante de feminismo liberal.

As circunstâncias da vida fizeram Bev viver num bairro proletário, mas ela está sempre lembrando que é uma estranha naquele ninho, que tem potencial de ter um diploma universitário e levar uma vida pequeno-burguesa. Aquela periferia se torna uma espécie de limbo, um não-lugar, pois o olhar da protagonista é o olhar narrativo do folhetim. Mais do que escrever um livro autobiográfico, o ponto de superação para a trama é cair fora dali, voltar ao nível de vida do suburb comparativamente mais abastado. E se Bev recebe uma autocrítica certeira como a mãe controladora que se tornou, a sátira edificante só termina quando há a reconciliação com seu filho e seu pai (James Woods). É a ideologia da “razão comunicativa” de Magnolia (1999), embora de maneira mais comedida.
 
Riding in Cars with Boys, como ficção de costumes que é, apresenta as ações do tempo, não só nas pessoas, mas também no espaço urbano dos Estados Unidos entre as décadas de 1960 e 1980. O clímax, com efeito, quando Bev e Jason (o filho) visitam o trailer do ex-marido (Steve Zahn), intensifica a sensação de lugares e, também, gente, de categorias diferentes. Por mais que Ray seja um cara legal no filme, a sua assinatura soa como humilhação aos que não se esforçaram o suficiente atrás do ouro. O apartheid informal, que nasce da dinâmica em nível amplo, não é sentido nas raízes estruturais, mas como uma falta de “sorte” e/ou de “força de vontade” num entrecruzamento superficial e intersubjetivo de decisões equivocadas e carente de consenso.

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[0] Primeiro tratamento: 03/04/2021.
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