sexta-feira, 2 de maio de 2025

Reprodução orgânica

Old

(tríler,
USA, 2021)
de M. Night Shyamalan.
 

por Paulo Ayres

Há inúmeros subgêneros temáticos transversais no cinema, como filme de guerra, filme de amor, filme de estrada, filme de adolescente, filme de luta, filme de faroeste, filme de Natal etc. Entre esse tipo de linha ficcional, o filme de praia também ergueu sua iconografia, parte de uma respectiva ficção mais ampla com o tema, e esta, por sua vez, reflete uma subcultura própria que o litoral evoca com, mais ou menos, intensidade. Old, contudo, não é um filme de praia habitual. No mais das vezes, vemos uma ficção histórica se concentrando na região praieira. Além de ser uma ficção científica, Old é mais uma peça da galeria de M. Night Shyamalan.

Como era de se esperar, Shyamalan filma essa praia de maneira encantadora, por mais que a situação estranhíssima faça do local um palco angustiante marcado pelas ondas que vem e vão. Cada enquadramento bem pensado contribui no desenvolvimento da imersão no enredo. Geograficamente limitado, preso entre os rochedos e o mar, Old é uma amostra do controle narrativo do diretor indiano-americano. Até porque, há muitos cineastas formados em escolas publicitárias exibindo criatividade visual. Shyamalan une seu gosto pelos quadros bem trabalhados com a paciência dramática necessária para tornar próximos os variados temas especulativos. Um ângulo inusitado de dentro de um esqueleto humano revela a perplexidade de um grupo de pessoas presenciando o definhamento total. Em outra ocasião, é como se acompanhássemos os passos pela praia, indo de uma ponta à outra. Quando ocorrem, por exemplo, um coito, uma gravidez e um parto “instantâneos”, nem é preciso de uma câmera indiscreta para indicar o espanto diante das transformações corporais e relacionais.

O que acontece naquele praia isolada é um descompasso gigantesco entre a reprodução biótica e a reprodução social. Os organismos que são expostos ao espaço natural específico sofrem um metabolismo ultra-acelerado. Anos de idade orgânica se tornam horas. O tríler é um prato cheio pra refletir ontologicamente como o ser social conserva em si as esferas orgânica e inorgânica, não se reduzindo a elas, mas tendo-as como bases necessárias. Ocorre em Old um desenvolvimento desigual e não combinado: os turistas são cobaias de um experimento científico de empresa farmacêutica. Entretanto, por mais que o envelhecimento veloz seja o ponto de pavor na trama, é apenas o aceleramento de um processo natural.

Trocamos de cabelos, cortamos as unhas, renovamos células... Num processo contínuo, somos e não somos os mesmos. É como se Heráclito estivesse em Old, olhando com uma luneta a dialética das ondas na praia, assim como o próprio Shyamalan, que interpreta um guia do resort da empresa Warren & Warren. Cada um ali é e não é o mesmo a se banhar nas águas. Nesse sentido, o tumor grande que é retirado de Prisca Cappa (Vicky Kriep) indica que certas desregulações das reproduções orgânicas ocorrem diariamente na sociedade. O câncer é um lembrete, por exemplo.

Numa perspectiva da natureza imensa e indiferente, as ondas constantes tendem a desmanchar os castelos de areia simbólicos — o roteiro é baseado na HQ Château de Sable (2011). Ironicamente, Shyamalan não perde de vista Trent Cappa e Maddox Cappa, como ocorre na diegese. O par de irmãos representa a luz no fim do túnel aquático. Antes da escapatória humanista no drama edificante, há até uma espécie de ritual de despedida e de comemoração dos laços familiares, junto da mãe meia surda e do pai Guy Cappa (Gael García Bernal), meio cego. Quanto às outras personagens na praia, elas desencadeiam certas paranoias e atritos, mas são, no fundo, carne para a tática narrativa da contagem de cadáveres.

Desenvolvimento estético desigual e combinado: assim como The Happening (2008), Old é um eco-thriller que edifica um porto seguro numa determinada célula social. Por outro lado, Shyamalan cria uma piada visual monstruosa com Chrystal (Abbey Lee), ironizando a preocupação cosmética com as marcas da idade e também a “cosmética” de filme de susto. O drama se engrandeceria se, entre outras coisas, ela fosse a esposa/mãe em foco.

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Lista de sci-fi thriller no subgênero eco-fiction:
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quarta-feira, 30 de abril de 2025

Lei da conservação

Everything Everywhere All at Once

(dramédia,
USA, 2022)
de Daniel Kwan
e Daniel Scheinert.
 

por Paulo Ayres

Se antes a ideia de multiverso já era um terreno fértil para a ficção especulativa, a concepção se popularizou bastante depois que a Marvel assumiu essa postura para unir e esparramar sua expressão cinematográfica. Eis que surge Everything Everywhere All at Once como figura de destaque da A24 para tratar o tema. Em essência, essa produtora realizou a mesma coisa que a subsidiária da Disney e outras andam fazendo. A encenação dramediesca da dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert, com fotografia soturna e ritmo de videoclipe, remete a algo como um The Matrix (1999) cheio de piadas visuais. Everything Everywhere All at Once até parece que vai enveredar pela ficção científica também, mas o acúmulo narrativo cria uma sobreposição carnavalesca e absurda de forma crescente. Nesse aspecto, a identidade do filme é uma curiosa operação de resistência racional.
 
As várias camadas em idas e vindas no enredo significam que “toda coisa” e “todo lugar” podem ser embaralhados. Um núcleo duro permanece: o casal sino-americano  Evelyn Quan Wang (Michelle Yeoh) e Waymond Wang (Ke Huy Quan), que possuem uma lavanderia, Gong Gong (James Hong), pai de Evelyn, e Joy Wang (Stephanie Hsu), a filha. Jamie Lee Curtis, como a inspetora Deirdre Beaubeirdre, está conectada com as transformações existenciais. Roupa suja se lava na receita federal e o filme concentra os saltos “multiuniversais” por ali. A mediação de fones e aplicativos, além de haver um universo Alpha como centro de controle, tornam-se gradualmente detalhes do movimento ligeiro de cortes, mudanças, lentes trincadas, entre outros efeitos. Everything Everywhere All at Once quer o embate de duas entidades superpoderosas, deificadas. As plumas e paetês de certos figurinos, um universo de dedos de salsichas, um guaxinim cozinheiro são alguns exemplos de como essa magical dramedy vai além da briga de uma super-heroína e uma supervilã. Um universo em que Evelyn é uma atriz de sucesso projeta a metalinguagem que gira o filme freneticamente: a imagem do bagel pode ser ridícula, mas indica o processo de “niilização” que ameaça o filme. Joy Wang/Jobu Tupaki é o arquétipo da juventude existencialista que não acredita em verdade objetiva.  Nesse sentido, Evelyn, enquanto a força pulsante do humanismo abstrato, tem a missão de estabilizar a obra como drama edificante.
 
Em relação ao desdobramento de universos incontáveis, há perdas e ganhos no espelhamento do real. Pode ser entendido como metáfora do leque de possibilidades presente nas interações intencionais. Nesse vaivém, a conquista está em se dar conta da complexidade da esfera do ser social, em que até as pequenas decisões e o acaso são também componentes entre as determinações da vida cotidiana. Certa dose de monotonia parece inescapável até para rabiscos, embora haja muita diferença entre ser rica e ser pobre. Por outro lado, ao explicar o problema como a fragmentação de filha e mãe, Everything Everywhere All at Once cria uma barreira alegórica tão autocentrada que o contexto social daquele grupo fica embaçado, parece que foi sugado em parte pelo buraco negro. Uma lavanderia se torna o centro do multiverso. Maior que o de Interstellar (2014), é o fetiche da família nuclear em nível astronômico.
 
Em certo momento, até é possível supor que a dupla de autores vai transportar definitivamente a consciência da Evelyn, que é a protagonista do “nosso” mundo, para outros mundos — ela continuaria viva em certa medida. Isso não ocorre. O desenvolvimento do roteiro visa conservar aquele grupo afetivo específico. Uma conservação com superação representando um grau de amadurecimento, mas que se fecha nessa união microscópica como se fosse o mundo entrando nos eixos. Alternando-se criativamente e de maneira binária, kung fu e gentileza são o caminho das pedras.
 
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terça-feira, 29 de abril de 2025

Tortura realista

 A Clockwork Orange

(folhetim,
UK/USA, 1971)
de Stanley Kubrick.
 
 
 
  por Paulo Ayres

Entre todos os exemplos de “olhar Kubrick” contidos na filmografia do gênio estadunidense, A Clockwork Orange reserva os mais emblemáticos. Obviamente que o protagonista narrador já fulmina a câmera no primeiro plano. Ali está, olhando diretamente para nós, Alex DeLarge (Malcolm McDowell) e seus três amigos de gangue, surgindo no quadro em movimento de recuo. O estabelecimento boêmio é branco, com adornos aberrantes e mesas em forma de mulheres. Além da cenografia esdrúxula, Stanley Kubrick se interessa pela marcação de pessoas em certa pose. É uma satirização obcecada pelos gestos pomposos (na trilha sonora esta até “Pomp and Circumstance Marches” de Edward Elgar) e mudanças de posicionamento. No enquadramento: um andar circular dos presidiários no pátio, uma taça de vinho com macarronada, etc. Para além disso, A Clockwork Orange observa as mudanças de posição social tanto mais que o tema direto da mudança comportamental. Junto com esses movimentos, a mudança interior se apresenta em olhares perturbadores, como P. R. Deltoid (Aubrey Morris) encarando Alex detido e dizendo que o adolescente sociopata agora é um assassino que vai para a prisão.
 
Virou uma referência conhecida, Alex num cinema experimental, com olhos arregalados, observando à força filmes com vários tipos de crueldade. No entanto, ainda falando dos olhares como indicadores subjetivos, o escritor Frank Alexander (Patrick Magee) tem o mais aterrorizante. Olhando, de maneira forçada, sua esposa ser estuprada e, depois, tremendo ao ouvir outra vez “Singin' in the Rain”. Canção alto-astral que se torna uma farpa na sua mente, assim como o gatilho traumático de Alex passa a ser a sua adorada Nona Sinfonia de Beethoven. São marcas dolorosas gravadas em corpos e Kubrick filma essas brainstorms na angústia da fisionomia e na imponência e frieza dos espectadores em volta. O folhetim de ficção científica alfineta o behaviorismo, é verdade, mas esparrama seu olhar satírico sobre as instituições educativa, penitenciária e médica dominadas pela racionalidade formal. Não poupa nem alguns supostos ativistas de esquerda, que enxergam em Alex um mero instrumento de contestação — o escritor paraplégico é um oposicionista, subversivo, criticando o governo conservador, que faz coisas como o Tratamento Ludovico.
 
Em outras circunstâncias faria sentido se alguém disser que vê cafonice, mas A Clockwork Orange é uma obra-prima e sua caricatura de futurologia retrô tem o charme na medida certa, com o transbordamento kitsch de cores, música erudita, câmeras lentas, que simulam às vezes um tipo de balé da chamada ultraviolência dos jovens delinquentes, e uma aceleração — ao som de “William Tell Overtur”, de Rossini — com Alex fazendo um ménage de fôlego com duas moças. Aliás, no livro edificante (1962) de Anthony Burgess, são duas meninas de uns dez anos embebedadas. Uma passagem perturbadora, mas o final moralista da obra literária é uma ruptura estranha: Alex passa a refletir sobre suas condutas criminosas e, por sua livre escolha, decide melhorar, buscando amadurecer como cidadão. Kubrick, por sua vez, mostra uma “solução” psicológica e política com uma baita ironia, entre flashs fotográficos e aperto de mãos com sorrisos cínicos.
 
Essa sátira realista de Kubrick gira em torno da tortura. Tanto a física quanto a psicológica. O quarteto fantástico de Alex começa a se dissolver quando ele dá uma pancada em Dim (Warren Clarke). Anos depois, como servidores policiais, dois deles torturam o antigo líder juvenil. Corpos que carregam marcas e ressentimentos, em diferentes graus, refletem atritos sociais em níveis variados, desde as mágoas parentais, rusgas fraternas até a barbárie mais abjeta. Mesmo com sermões ironizados, há um padre que denuncia a coisificação contida no racionalismo formal da nova técnica corretiva. Kubrick, diferente de Burgess, valoriza com ressalvas a mensagem reflexiva do sacerdote sobre a escolha enquanto atributo humano. O techno-feuilleton do cineasta está de olho no tabuleiro da sociedade e não somente na abstração regional e imediata de uma peça se movendo. Só acha que esse movimento do filme é circular quem se prende no olhar individual do protagonista e abstrai todas as mudanças sociais, que ele deslocou e que gravitam em torno dele de modo qualitativamente diverso. O plano derradeiro, da cavalgada imaginária com plateia burguesa, é a frieza mais calorosa da história do cinema.
 
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domingo, 27 de abril de 2025

Filosofia ocidental

Los Japón 
 
(comédia,
ESP, 2019),
de Álvaro Díaz Lorenzo.
 

por Paulo Ayres

Qual é a proposta humorística da comédia Los Japón? À primeira vista, faz um contraste irônico entre determinadas culturas ocidental e oriental, colocando essa mistura no contexto da monarquia moderna. Na superfície, portanto, é uma sátira edificante sobre a chamada globalização. Uma ficção política esperta que, além do tema monárquico, levanta os assuntos do sindicalismo e do feminismo, ainda que seja da perspectiva centrista da conciliação de classes. Se o reflexo estético ficasse somente nisso seria muito burocrático, cerimonial e asséptico (como a aparência da fábrica transnacional japonesa). Escorre, por entre a combinação internacional retratada, algo além da ironia com uma tradição aristocrática imbricada no mundo moderno e capitalista. O Japão dos últimos tempos é Ocidente, ao menos no sentido geopolítico de Norte Global. Uma contradição real que o filme sinaliza nos detalhes de um intercâmbio político.
 
Um centro luminoso de Tóquio com bastante entretenimento e comércio, privada com tecnologia de ponta, pegadinha ultrajante da televisão japonesa, tatuagem da Yakuza... O intercâmbio cultural da comédia histórica se serve de clichês, mas à medida que ocorrem, o ponto interessante é o espelhamento de fronteiras borradas. O que é estranho mesmo é que a monarquia continue existindo no capitalismo tardio, principalmente em países centrais. Ainda que alguém lembre que ela está deslocada constitucionalmente nas democracias liberais, a sua manutenção como museu vivo demanda alguma dose de financiamento, prestígio e talvez algum pouco de poder político. Nesse sentido, Paco Japón (Dani Rovira), o operário espanhol, republicano, ateu e de esquerda, faz um rápido comentário sobre a perda de prestígio do então rei de seu país, Juan Carlos.
 
Um ancestral de Paco foi um samurai de uma família real japonesa e os monarquistas estrangeiros preferem ele e sua família como pedestal de adoração do que Mariko (Maya Murofushi), pois nesse reinado museológico há regras contra uma imperatriz na posição central. Paco é o novo imperador do Japão, mas o filme só o destaca como chefe de família para fazer o estereótipo predominante. Algo como os Simpsons (1989-), que, aliás, também visitaram o Japão em certo episódio. Assim como a animação farsesca, Los Japón ressalta a perspicácia feminina na figura da esposa. Encarni (María León) até assume um papel de liderança na fábrica, depois de ser a principal reformadora da monarquia japonesa. Pena que o filme não coloque essa ideia de aristocracia empoderada como objeto de ironia, mas no clima triunfante de final feliz. É um avanço social no palácio? Uma meditação nos jardins luxuosos talvez nos traga a resposta filosófica.

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Lista de historical comedy no subgênero political fiction:
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sábado, 26 de abril de 2025

Encontro niilista

The Brown Bunny

(tragédia,
USA/JAP, 2003)
de Vincent Gallo.


por Paulo Ayres

The Brown Bunny tem um final de impacto. E não, não é por causa do boquete real que Chloë Sevigny faz em Vincent Gallo.

Uma viagem em mimese crua, na fronteira do documentário, faz do espectador um tipo de caroneiro de Gallo. The Brown Bunny é cinema de introspecção e sussurros. De propósito ou não, a captação de áudio deixa a desejar em certos momentos. Além de protagonista, Gallo é o diretor, roteirista, produtor e editor da obra, passando a sensação de condução, mas num ritmo sonolento e de cabeça longe. Bud Clay é um piloto de motocross indo de furgão de New Hampshire para a Califórnia. Do pouco que sabemos pelas lembranças e algumas indicações, ele não tira da cabeça a antiga namorada Daisy Lemon (Sevigny). Lembra um pouco o que a tragédia brasileira Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009) também faria na proposta errante de filmar estradas e paradas. Esse último filme, no entanto, é um drama edificante sobre superação afetiva. E tudo estava indicando que a melancolia receosa de The Brown Bunny seria compensada com uma reconciliação, tendo como injeção de ânimo o sexo explícito, que é mais comentado que o enredo. Poderia ser uma apoteose que equilibraria a totalidade. Estranhamente, isso não ocorre. O ato é pensado mais como uma polução noturna. Se é um fantasma literal ou não, nem importa. O clima de pesadelo continua.

Drama niilista, The Brown Bunny é um filme com uma porção de encontros amorosos que não se completam. Uma guria, servidora comercial, abandona tudo e logo é abandonada. As imagens semidocumentais se perdem na debilidade isolada do “quase”. A objetividade típica da filmagem tragediesca é usada quase como um recurso onírico. Os episódios se evaporam, seja uma memória, o beijo numa desconhecida ou o lanche pago para uma prostituta. A explicação final para o trajeto depressivo sublinha que é, no fundo, uma viagem sem rumo. Uma ruminação de mágoa e culpa num círculo determinista. Nesse sentido, o que é, em síntese, The Brown Bunny? É um conjunto niilista de encontros; assim como O Lobo Atrás da Porta (2013) é um conjunto naturalista de encontros e Movie 43 (2013) é um conjunto realista de encontros.
 
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segunda-feira, 21 de abril de 2025

Conjunto feminino

 Barbie

(farsa,
USA/UK, 2023)
de Greta Gerwig.
 


por Paulo Ayres

Farsa metalinguística, Barbie, o filme live-action, é um produto bem tardio — em relação à famosa linha de bonecas comercializadas — e surge com a intenção de refletir o trajeto dessa mercadoria, como ela acompanhou transformações e foi cravada no imaginário da cultura pop. Greta Gerwig comanda o projeto de modo que a própria Mattel, empresa do brinquedo, entre na metalinguagem como objeto satírico. Chamativo como a Barbieland, um mundo que reproduz as brincadeiras com bonecas diversificadas, está o edifício — mais frio que o FBI — da Mattel. Um círculo estúpido de executivos homens representa uma calculada inclusão social para mulheres no período contemporâneo. O CEO de Will Ferrell chefia como um vilão retardatário, cumprindo esse papel simbólico, aparecendo atrasado na perseguição. A casa de bonecas e a casa real têm contradições de sobra para sustentar o desenvolvimento do enredo que é simples, mas profundo.

Aliás, quem imaginaria antes que Barbie, o filme live-action, seria uma comédia pastelão? Já na escolha do gênero satírico Gerwig indica uma ousadia considerável. Filmes animados da Barbie — como Skipper and the Big Babysitting Adventure (2023) — tendem a ser comédias em sentido estrito. Do início, que parodia 2001: A Space Odyssey (1968), até o primeiro acompanhamento da vida cotidiana da Barbie (Estereotipada ou Barbie Barbie) de Margot Robbie, com uma rotina de “mentirinha”, Barbie sinaliza que a brincadeira é séria. É um faz de conta em que homens são mais que coadjuvantes, são deslocados como um subgrupo preenchendo o imaginário feminino como utensílios, como as peças das casas de brinquedo. Mundo invertido de muitas meninas, que vão crescendo e entendendo uma sociedade com outra configuração, embora com avanços consideráveis nos últimos tempos. Aqui está um ponto que a onda progressista não evita. Na Barbieland, homens são deslocados, mas a coisificação é a essência generalizada como no mundo extremamente mercantilizado. A boneca, ademais, projeta um ideal de beleza padronizado.

Fora da bolha de plástico, Ken (Ryan Gosling) descobre o patriarcado e se encanta com as possibilidades subversivas de opressão. A Barbie fica mais deprê ao se entender como parte integrada desse sistema. Gerwig, todavia, não joga o bebê junto com a água do banho. Pondera sobre a continuidade e a descontinuidade. Seria a boneca um símbolo do capitalismo sexualizado, como diz a menina Sasha (Ariana Greenblatt)? Seria uma fonte de representatividade feminina para inspirar pessoas como a mãe dela, Gloria (America Ferrera)? Nem tanto mar, nem tanto terra. Barbies inclusivas, astronautas, presidentas, ganhadoras do Nobel — ou megaempresárias, como a criadora Ruth Handler (Rhea Perlman), que aparece como um oráculo — abrem caminhos, desbravam uma maior participação, mas continuam uma parcela diminuta dentro da dinâmica patriarcal e de classes. A conciliação reformista emerge como a solução gradual no filme, mas, ironicamente, indica que o feminismo liberal, sem um horizonte mais amplo, desemboca na Barbieland, enquanto utopia, meta imaginária.
 
A farsa, porém, “resgata” a protagonista através de uma família nuclear de Los Angeles, conduzindo-a para certa normalidade romantizada — independente se essa era intenção de Gerwig, soa assim a sequência no carro real. Enquanto isso, a Barbie Estranha (Kate McKinnon), no mundo cor-de-rosa, representa outro caminho subversivo: a transgressão enquanto revolta limitada e individualista. Faltou ironizar aquele carro familista como algo de plástico também.
 
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domingo, 20 de abril de 2025

Limiar da dor

 The Passion of the Christ
 
(tríler,
USA, 2004)
de Mel Gibson.
 
 

por Paulo Ayres
 
Mel Gibson resolveu fazer um filme em aramaico, língua morta, sobre a prisão e a crucificação de Jesus, levando a passagem dos Evangelhos ao estilo de superprodução hollywoodiana. O resultado é o filme-acontecimento com aspecto polêmico, conseguindo a repercussão enorme sobre essa proposta de espetáculo catequético. Muita violência gráfica em encenação dramática e a acusação de antissemitismo foram os tópicos mais comentados no período do lançamento. No entanto, observando a obra com certo distanciamento ficcional, entre exageros e acertos, há um bom epic thriller que trabalha com uma história conhecidíssima e retratada em grande parte do mundo.
 
Primeiramente, é bom lembrar que há um panorama diverso no tratamento do material. O comunista Pier Paolo Pasolini fez o folhetim Il Vangelo Secondo Matteo (1964), um filme elogiado e recomendado pela Igreja Católica. Martin Scorsese, o maior cineasta vivo, é católico e fez uma versão alternativa e “herética” com The Last Temptation of Christ (1988). Gibson, por sua vez, é sincero na sua intenção artística que busca uma suposta fidelidade bíblica. Em parte, o que ele encena é a velha tradição iconográfica do Ocidente numa mimese crua, aumentando o impacto e também incrementando o relato com recursos comuns na ficção de fantasia.
 
O início com Jesus/Yeshua (Jim Caviezel) no sopé do Monte das Oliveiras é confuso. Fotografia azulada, tensão com soldados romanos e uma serpente. Não há apenas um clima de The Lord of the Rings (2001-2003), a simbologia abundante transborda. Logo, a luz do dia explicita a beleza trazida pelo diretor de fotografia Caleb Deschanel, inspirada, segundo alguns, nas pinturas de Caravaggio. O percurso do drama edificante, entre a condenação e a morte, é a proximidade narrativa com a Via Crucis. Aproximação dolorosa na carne rasgada e sangrando. Isso remete a uma questão audiovisual, especialmente na mimese dramática: como filmar a tortura física e outras brutalidades extremas? Dependendo da maneira, a dramatização pode exagerar, fazer ela mesma uma tortura psicológica ou fetichizar a crueldade. Ao menos, quanto à propensão sádica, The Passion of the Christ não pode ser acusado. O martírio mais famoso relatado está claramente indicando uma inspiração para a visão penitente. Há toda uma significação para esse lado. Nesse sentido, os açoitadores romanos são claramente vilões. Assim como Judas Iscariotes (Luca Lionello) é humilhado e se enforca. O maniqueísmo, como era de se esperar nesse contexto, está bem delineado. Apesar disso, surgem certos incrementos de gosto duvidoso, mas chamativos: o demônio (Rosalinda Celentano) aparenta ser uma figura andrógina. Em certa passagem, a entidade sobrenatural carrega uma bebê sinistro... Contudo, isso diz mais respeito à filiação romântica do reflexo estético. Ao lado do Jesus convencional, com pinta de galã europeu e olhos cor de mel, aparece um Barrabás (Pietro Sarubbi), caolho, gordinho e com jeito rústico.
 
No percurso sofrido até a ressurreição, Gibson coloca vários flashbacks. Alguns são bem bolados. Destaque para Jesus artesão inovando no design de uma mesa. Há também um belo jogo de planos, não somente pela presença de Monica Bellucci como Maria Madalena, mas pela criatividade de alguns segundos em câmera lenta com desenho na areia e uma tentativa de apedrejamento. Por outro lado, há algumas ideias que cumprem uma função monótona de conectar o texto com referências católicas, como o Santo Sudário ou Maria (Maia Morgenstern) segurando seu filho, fazendo a pose da estátua Pietà de Michelangelo.
 
Arte panfletária é arte edificante. Não importa se o panfleto é religioso ou político. E a sinceridade é uma qualidade no tríler, que transparece a meta de levar seu conteúdo específico. Alguns podem dizer que Gibson enfatiza demais o conflito das autoridades judaicas com Jesus, mas a parte que Pilatos (Hristo Naumov Shopov) lava as mãos está no texto. Havia uma contradição religiosa entre o judaísmo e o cristianismo nascente. Se ele exagera isso, também há o Império Romano como o agente terrível da execução.
 
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Lista de fantasy thriller no subgênero epic fiction:
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