quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Segundas intenções

Passengers
 
(dramédia,
USA, 2016)
de Morten Tyldum.
 
 

por Paulo Ayres 
 
Drama edificante de amor, Passengers tem um aspecto muito bem-vindo e que não é comum de se ver em ficções científicas. O roteiro estabelece o uso não metafórico das relações entre humanos e máquinas sem cair no fetiche da tecnologia. Uma cena que simboliza isso é o tapa na cara que Jim Preston (Chris Pratt) dá no androide Arthur (Michael Sheen), tentando fazer o seu interlocutor entender que eles dois possuem níveis ônticos distintos.

Passengers, ademais, se insere entre as obras que comentam a tendência alienada da exploração espacial via mercado, que tem ganhado destaque recentemente com alguns bilionários torrando fortunas numa corrida espacial paralela. Assim como The Space Between Us (2017), Passengers é uma dramédia espacial estadunidense sobre a iniciativa privada em órbita, porém com uma dose maior de mordacidade. Na longuíssima viagem da nave dormitório Avalon (120 anos, transportando 5258 indivíduos sociais em hibernação), a tecnologia apenas incrementa uma estratificação de classes, a nossa forma de apartheid, mais ou menos camuflada e suavizada de cada dia. Nesse sentido, tal como o Titanic (1997) de James Cameron, o norueguês Morten Tyldum comanda um drama em que o foco na exaltação amorosa coexiste com um reflexo lúcido das contradições da moderna desigualdade social. Nessa metáfora, o capitalismo continua dando as cartas até na viagem galáctica e na colonização espacial.
 
Enquanto isso, lembrando o bartender fantasmagórico de The Shining (1980), o bartender robótico é apenas mais uma máquina na nave recebendo uma determinação programada que, por mais flexibilidade de interação que forneça, é um apêndice de objetivações pré-fabricadas. Um instrumentum vocale de fato. O aparente trabalhador chama a atenção, em meio à maquinaria, apenas por sua aparência humanoide da cintura pra cima. Na verdade, trata-se de um dos dispositivos acionados pelo casal que faz parte de um conjunto de trabalho morto. Além disso, Passengers é sagaz ao mostrar Jim Preston como um engenheiro mecânico, para contrastar a capacidade da sua interação valorativa no sentido de ato teleológico. Portanto, só pode ser visto como uma ironia quando a escritora Aurora Lane (Jennifer Lawrence) diz que sente inveja daquela máquina, com aparência de pessoa, por ela ter um propósito na vida. Afinal, trata-se de um “trabalhador” ali servindo bebidas tanto quanto é um trabalhador um boi que puxa arado.
 
Essas inteligências artificiais, nesse nível apresentado e que espelha as que temos no presente, não são os sujeitos das atividades. No ser social, com a produção material indo para além de si mesma, desenvolve-se cada mais as formas secundárias de interações valorativas. De certa maneira, Passengers coloca em destaque isso ao ter como grande dilema para Jim a ausência da interação humano-humano. E, no contexto do enredo, favorece uma ressignificação irônica da noção de segundas intenções. Não como falta de sinceridade, mas como uma característica das relações sociais. Até mesmo a sexualidade humana está contida nesse círculo secundário e mais complexo da reprodução social.

Falar sobre a solidão específica do mundo capitalista até virou um clichê, mas Passengers, apesar de sua limitação romântica, sabe como fazer isso com desenvoltura.

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Lista de sci-fi dramedy no subgênero space fiction:
[0] Primeiro tratamento: 13/10/2021.
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terça-feira, 9 de setembro de 2025

Custo de vida

Logan 
 
(tríler,
USA, 2017)
de James Mangold.
 
 
 
Deadpool & Wolverine

(comédia,
USA, 2024)
de Shawn Levy.

  

 
por Paulo Ayres

O gibi dos X-Men não apenas existe em Logan, como tem um breve destaque no desenvolvimento do enredo. Folheando os quadrinhos, Logan (Hugh Jackman) comenta que aquela ficção seria uma besteira, não descrevendo bem o que aconteceu de fato na realidade. Certa ironia que há nisso é que aquele folhetim impresso simboliza, no contexto da totalidade do filme de 2017, um caminho que provavelmente conduziria à arte realista. É complicado fazer projeções de alternativas passadas, mas, ao que parece, o roteiro com que James Mangold trabalha é um exemplar de filme que teria um ótimo desempenho numa encenação satírica. De certa forma, ironicamente, a sequência direta do techno-thriller é a comédia fantasiosa Deadpool & Wolverine. Uma sátira edificante que vem na onda de rearranjar elementos no assunto do multiverso — não só na Marvel como na DC, como pode ser visto no filme The Flash (2024?) de [Andy Muschietti]. 
 
Mesmo em gêneros ficcionais tão díspares, o drama de Mangold e a sátira de Shawn Levy partem de um desejo de desvio parecido: fazer superproduções hollywoodianas com material de super-heróis dos quadrinhos numa classificação etária alta. Os dois projetos aprofundam a brutalidade em violência gráfica. No entanto, corpos perfurados e sangue na tela podem ser elementos chamativos num filme como Deadpool & Wolverine, mas em Logan, por si só, não garantiriam certa profundidade necessária na forma específica. Apostando num drama de ficção científica com cenário distópico, Logan não estaciona no nível de equívocos dramáticos com fonte primária de HQ. Ainda que haja certas simplificações e personagens “pirotécnicos”, incluindo as crianças fugitivas, há uma mão pesando para proporcionar um clima decadente e a resistência, na medida do possível e em sintonia com o enredo. A América refletida vive uma política fascistoide de controle e caça de mutantes. Entre os assassinados estarão: Charles Xavier (Patrick Stewart), uma família amistosa que dá abrigo e o próprio Wolverine.
 
Deadpool & Wolverine também possui um clímax de sacrifício redentor, embora sem as consequências do túmulo com um X como crucifixo funerário. Logan, drama edificante, desenvolve-se como um tipo de teste de paternidade, por meio da personagem Laura (Dafne Keen), um clone feminino de Logan com os mesmos superpoderes curativos e as garras de adamantium. Curiosamente, a atriz crescida retorna em Deadpool & Wolverine, mas enquanto uma X-23 meio deslocada no foco da trama. A comédia tem seu dilema em dois anti-heróis fracassados querendo dar a volta por cima. A busca de relevância e de uma equipe por Deadpool (Ryan Reynolds) e a superação do sentimento de culpa por um Logan com traje amarelo. Um traje como o da série X-Men '97 (2024–) — folhetim em desenho animado que retoma o universo de X-Men: The Animated Series (1992–1997). Enquanto isso, o universo cinematográfico da Fox é conectado ao MCU e tem seus direitos de reprodução interagindo com a questão direta do multiverso.
 
A Marvel e a Fox foram compradas pela Disney. Essa centralização de capitais é também assunto para algumas piadas de Deadpool. O personagem já havia demonstrado essa habilidade mágica de metalinguagem e de quebrar a quarta parede nos episódios anteriores: Deadpool (2016), Deadpool: No Good Deed (2017), Deadpool II (2018) e Deadpool and Korg React (2021). Em Deadpool & Wolverine isso se reforça com o multiverso sendo objeto de enredo e porque, em cerca de metade do filme, a dupla principal é enviada para Void, um universo alternativo chamado de lixão metafísico, que possui valores de uso e gente descartados de vários universos. Entre as pessoas encontradas, há uma formação passageira de equipe com Laura, Elektra (Jennifer Garner) — de Daredevil (2003) e Elektra (2005) —, Blade (Wesley Snipes) — da trilogia da New Line Cinema (1998–2004) — e Gambit (Channing Tatum). Entretanto, o destaque vai para uma participação breve, mas indicativa, da cultura pop reciclando ou cancelando: Chris Evans surge não como Capitão América, mas como o Tocha Humana de Fantastic Four (2005) e Fantastic Four: Rise of the Silver Surfer (2007), dirigidos por Tim Story.
 
Em Logan, além de haver uma empresa estadunidense tendo prejuízos nas experiências científicas com jovens mutantes no México, um clone adulto de Logan aparece como se fosse uma arma biológica do grupo perseguidor. Ainda que continue com um quê de eugenia na trama, o custo de vida entra mais no sentido econômico em Deadpool & Wolverine. É um panorama comediesco que vai desde o aluguel até a metáfora da reorganização criativa e mercadológica do entretenimento de longo alcance. Na distopia anarquista ao estilo de Mad Max (1979–), em vez de Charles Xavier, há sua irmã Cassandra Nova (Emma Corrin), uma mutante poderosa que altera estados da matéria e que alimenta uma criatura com itens de universos abandonados.

Antes de Logan, houve dois folhetins audiovisuais de um Wolverine sem X-Men: X-Men Origins: Wolverine (2009) e The Wolverine (2013). Uma versão do Deadpool de Reynolds aparece no primeiro. Um papel de vilão e sem boca. Embora também sejam duas boas sátiras edificantes, como a linha principal dos X-Men da Fox (2000–2019), Deadpool foi subaproveitado. O ator conseguiu levar adiante o projeto de reciclar o personagem no cinema. 

De certa forma, o controle central sobre personagens aparece, em sentido figurado, na organização TVA (Time Variance Authority), que monitora diversas linhas do tempo. O falecido Wolverine de Logan é a âncora de um universo alternativo, a Terra-10005. A meta do Mr. Paradox (Matthew Macfadyen), aliás, seria levar aquele Deadpool para o MCU. No enredo, a finalidade não se cumpre. Por outro lado, a própria feitura de Deadpool & Wolverine é a finalidade realizada.
 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Êxodo rural

 Cidade; Campo 

(tragédia,
BRA/GER/FRA, 2024)
de Juliana Rojas.
 
 

por Paulo Ayres

O filme Cidade; Campo, na sua primeira parte, indica o resultado do êxodo rural. Sem estabelecer uma conexão com essa primeira história de vida, parte-se para a segunda. Aparentemente é o caminho oposto: um êxodo urbano para uma vida na zona rural. Todavia, essa parte salienta como um percurso desse tipo, sem conseguir se estabelecer, é mais uma exceção do que regra. Em todo caso, o fluxo migratório e a crescente urbanização são tendências predominantes e a obra de Juliana Rojas expressa isso na junção das partes.
 
Um nome de ficção com o sinal de ponto e vírgula. A escolha desse sinal linguístico foi muito bem feita, embora possa se questionar a ordem das duas palavras. Um “campo; cidade” seria mais preciso com os dados ontológicos de origem. O ponto e vírgula é um meio-termo entre o ponto de separação e a vírgula de continuidade em outro patamar. Aponta, desse modo, a dialeticidade de pares categoriais, por exemplo: “natureza; sociedade”, “necessidade; liberdade”, “dia; noite”, “camelo; dromedário”, “comédia; farsa”...
 
Rojas começa a tragédia audiovisual com o dilema da ex-trabalhadora rural Joana (Fernanda Vianna) que vai para a casa da irmã na cidade de São Paulo. Ali, começando uma nova vivência, desenvolve um vínculo com ela e o neto Jaime (Kalleb Oliveira). Com a ajuda dele, torna-se uma trabalhadora “uberizada” num aplicativo de trabalho doméstico. Nessa dimensão laboral, Cidade; Campo termina numa indignação coletiva das trabalhadoras exigindo mais responsabilidade da empresa Diarex. Não chega ao tom triunfante, mas o drama faz questão de encerrar essa episódio com essa experiência sobre um estímulo da consciência de classe. No ambiente residencial, Joana mexe numa horta como se fosse um micro-espaço rural na zona urbana. As aparições fantasmagóricas são mais contidas.
 
O uso do elemento sobrenatural, como metáfora direcionada para realçar certas relações sociais, foi visto em obras de Rojas, como Trabalhar Cansa (2011) e As Boas Maneiras (2017). Na tragédia audiovisual Cidade; Campo, esse aspecto gradativo se relaciona mais com a memória, a herança e a migração. A história do casal Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Lynzmeyer) é de um êxodo invertido que assume o “passado” e a labuta na sua rotina rústica. Não é tanto a investigação de algo misterioso. Os sopros de tríler não se efetivam. Tal como a experiência com a substância psicodélica que as moças realizam certa noite, Cidade; Campo mantém-se mais numa camada de contemplação. É claro que estão lá belos planos de Rojas sobre o trabalho material no campo; contudo, como parte desse tom de experimentação, quase turístico.
 
Para não dizer que não falei das flores: o drama edificante, que destaca o contraste até no nome, estende a noção de variação complementar para o casal, nos contornos preto e branco, gordo e magro. 
 
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terça-feira, 2 de setembro de 2025

Dispositivo móvel

 The Naked Gun
 
(farsa,
USA, 2025)
de [ ].
 

por Paulo Ayres 
 
Quadros, placas, manchetes de jornais, legenda com informações que surgem na tela... esse material pode se tornar uma piada visual na farsa. Do mesmo modo, objetos de fundo e decorativos podem ser incorporados em primeiro plano. Vide um boneco de neve que, no novo The Naked Gun, quase forma um trisal com o Tenente Frank Drebin Jr. (Liam Neeson) e Beth Davenport (Pamela Anderson). Em resumo, o filme de [Akiva Schaffer] possui certa tendência geográfica em que os elementos de cenário disputam a atenção com a linha principal do roteiro. Entretanto, no conjunto de objetos que servem de suporte humorístico, está a fotografia emoldurada do Frank Drebin de Leslie Nielsen na parede. Um ponto de reverência entre outros antigos membros do Esquadrão Policial de Los Angeles.
 
Obviamente que as imagens de ligação se mostram como somente uma das constantes piadas; porém, ao mesmo tempo, é uma conexão daquilo que a sátira assume como legado em movimento. São vários anos em que a franquia não lança uma continuação. Além da série televisiva Police Squad! (1982), o trio ZAZ — David Zucker, Jim Abrahams e Jerry Zucker — realizou uma trilogia de episódios longos: The Naked Gun: From the Files of Police Squad! (1988), The Naked Gun 2½: The Smell of Fear (1991) e Naked Gun 33⅓: The Final Insult (1994).
 
Mesmo que seja uma renovação, esse The Naked Gun da nova geração continua o patamar anterior. O terceiro filme original, o de 1994, termina justamente com o nascimento de Frank Drebin Jr. e o “insulto” final, ou piada final, é um morde e assopra ilustrativo. O policial feito por Nielsen entra na sala errada da maternidade e vê um recém-nascido negro. Depois, a imagem mostra que é outro o bebê de Jane (Priscilla Presley). Numa sátira realista, esse tipo de piada de adultério seria confirmada. Continuando o esquema edificante, The Naked Gun retoma alguns elementos da ficção criminal de estilo noir, mas caminhando na “heroicização” do casal principal. Há alguns ambientes meio escuros, narrações em off com voz de locutor e uma femme fatale. Momentos bem criativos; embora, como a cena da sombra indica, seja um filme de contornos, silhuetas de fato.
 
O vilão é o burguês Richard Cane (Danny Huston), da empresa Edentech. O enredo, por sinal, destaca o panorama tecnológico de dispositivos digitais e carro sem motorista. Com isso, salienta o longo hiato da franquia. A herança narrativa, por outro lado, continua até nos servidores escudeiros, que são os filhos dos anteriores.
 
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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Biologia evolutiva

Mickey 17

(dramédia,
 
USA/KOR, 2025)
de Bong Joon Ho.

 

por Paulo Ayres

Ainda que seja tentador falar que Mickey 17 é um tipo de fusão entre os folhetins Starship Troopers (1997) e The Sixth Day (2000), há algo nele que transcende a junção simples das temáticas de clonagem humana e de colonização espacial. A ideia que adiciona uma complexidade para o bem e para o mal é revelar que cada filhote dos seres rastejantes não é um mero filhote, mas um bebê. Apesar da aparência de tardígrados, longe da figura humanoide, as criaturas se mostram como uma esfera do ser social. Os terráqueos colonizadores até desenvolvem um tradutor para a comunicação social entre as espécies. Com o rompimento da iniciativa pacífica dos nativos, uma lei de talião interplanetária avisa que é olho por olho, dente por dente.

O clímax da dramédia de Bong Joon-ho apresenta planos abertos na tempestade de neve e os seres do planeta gelado Niflheim estão atiçados como marimbondos. Nesse momento, o enredo destaca a conciliação particular entre os dois clones, feitos por Robert Pattinson, como um embrião de algo maior parecido com um missão diplomática. A ficção espacial, a partir daí, desemboca a questão alardeada dos “múltiplos” — clones adultos que, por alguma razão, não surgem pela eliminação do corpo anterior, acumulando entes idênticos. Esse acúmulo traz implicações éticas para a humanidade retratada, mas, diante de um programa biológico chamado de Descartáveis, as medidas tomadas pelas autoridades são cruéis e pragmáticas.

O herói duplicado de Mickey 17 é o que dá nome ao filme e mais o Mickey 18. Com a vida poupada pelos creepers, Mickey 17 se depara com sua versão mais nova, evoluindo a relação do desentendimento para a aliança. Primeiramente, é interessante notar como a encenação de Bong coreografa corpos em deslocamento no ambiente, em lutas corporais que aprofundam os conflitos da trama. Pense-se, por exemplo, no entrelaçamento de pernas que a agente Nasha Adjaya (Naomi Ackie) dá no pescoço da dondoca vilã Gwendolyn (Toni Collette). Ou, também, como um perrengue cresce quando algum sujeito se esforça para não ser jogado num incinerador de funcionários descartáveis. A frieza do ambiente externo parece distinta nesses momentos internos em que o descarte fervente é um símbolo máximo da coisificação de pessoas e da frieza classista.

Diferente dos conflitos com ausência de vilões que há em Gisaengchung (2019), Bong cria um vilão grandiloquente em Mickey 17. Kenneth Marshall (Mark Ruffalo) almeja compensar a derrota na eleição política entrando para a história como grande liderança na colônia espacial. No entanto, é o sobrenome de Mickey que aparece no fim do drama edificante, indicando a superação desse tipo de alienação individual.

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Lista de sci-fi dramedy no subgênero space fiction:

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domingo, 31 de agosto de 2025

Mentira sincera

  

Just Go with It

(comédia,
USA, 2011)
de Dennis Dugan.

por Paulo Ayres

Em algumas sátiras edificantes é mais fácil perceber certa estrutura binária em que duas tendências se opõem até decretar a supremacia de uma delas. Como exemplos estão duas comédias de 2011 protagonizadas por Adam Sandler e dirigidas por Dennis Dugan. Em Jack and Jill (2011), essa característica se desdobra até no enredo, duplicando Sandler como o representante de cada uma dessas vertentes contraditórias. Em Just Go with It, por outro lado, essa dualidade está sobreposta nos mesmos personagens, que fingem ser o que não são: há uma teia de mentiras em busca de prestígio e de conquistas.

Just Go with It começa com um prólogo em que aparece um Danny (Sandler) farsesco e traumatizado no casamento, estabelecendo o padrão de um “golpe” que conduzirá sua vida pessoal. O “personagem” do personagem, usado para impressionar mulheres, é justamente a figura do prestativo marido/pai de família. A operação moral até o fim da trama, então, é fazer esse “bom moço”, encenado ardilosamente pelo cirurgião plástico, tornar-se predominante, isto é, a base do seu eu. Nesse sentido, essa comédia de costumes caminha, gradualmente, para os desabafos e a restauração familista. Todavia, no percurso, Just Go with It apresenta algumas situações interessantes e várias piadas afiadas. Inclusive as crianças do filme possuem a construção mais eficiente com a premissa, pois elas não são perpassadas pela rigidez metafísica dos adultos: embora imaturas, elas são interesseiras, carinhosas e malandras de maneira fluida e unitária.

Além disso, é possível fazer um paralelo de Just Go with It com 50 First Dates (2004), de Peter Segal, e I Now Pronounce You Chuck & Larry (2007), de Dennis Dugan. Nas três comédias há a redenção de um solteiro, feito por Sandler, através do amor romântico. Uma vida intensa de anarquia relacional encerrada pela mocinha da vez. No caso de Just Go with It, emerge duas mulheres com potencial para essa posição — Katherine (Jennifer Aniston) e Palmer (Brooklyn Decker) —, mas o desenvolvimento do enredo confirma a primeira no típico plot amoroso.

Naquilo que Just Go with It propõe, cumpre seu objetivo. A fórmula não dá o passo necessário para a arte realista, mas apresenta uma inclinação nesse sentido, de forma fugaz. O tema da dissimulação como mecanismo de defesa reflete algo que ocorre na nossa forma de sociabilidade.

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[0] Primeiro tratamento: 15/09/2020.
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sábado, 30 de agosto de 2025

Pureza realista

 Os Sete Gatinhos

(folhetim,
BRA, 1980)
de Neville d'Almeida.
 


por Paulo Ayres

No conjunto de frases irônicas de Nelson Rodrigues encontra-se uma que diz que, se as pessoas soubessem das intimidades umas das outras, ninguém se cumprimentaria com as mãos. A peça teatral Os Sete Gatinhos (1958) sintetiza bem o tema das fachadas e intimidades presente na obra do autor e, ao ser transposta ao cinema em 1980, popularizou algumas frases memoráveis no cinema nacional. O filme de Neville d'Almeida contém, por exemplo, “eu quero saber quem foi que desenhou caralhinhos voadores na parede do banheiro... quem foi?” Há também o deboche, visto em outras adaptações audiovisuais, com um suposto complexo de inferioridade do trabalho de contínuo: “me chama de contínuo!”... “eu sou contínuo e você é um filho da puta!". Nesse sentido, para ir ao cerne do folhetim de Neville é necessário se atentar para outra frase: “Silene é pura por nós!”.

A interpretação excelente de Lima Duarte dá vida a um Noronha sinistramente cômico. Ele é o centro gravitacional do enredo que fala de um homem relativamente conservador. É a figura do pai rígido ironizada na contradição de concentrar sua devoção na caçula de cinco filhas, prostituindo as outras como um sacrifício. No desfecho, aliás, numa satirização de um ritual de sacrifício, as mulheres da casa assassinam a figura paterna do tirano. Segue-se um final festivo que equilibra o caráter de um horizonte mais elevado e aberto. Perto da situação coisificadora anterior, sob a batuta de Noronha, a prostituição oficial, com a casa transformada num bordel das mulheres, emerge como um grau de conquista, ainda que se dê no terreno da mercantilização sexual. Não há um final romantizado como haverá em Bonitinha, Mas Ordinária (1981), de Braz Chediak.
 
Se na sátira naturalista A Dama do Lotação (1978), Neville destacou uma canção de Caetano Veloso, na sátira realista sobre a família nuclear de Noronha, a canção de Erasmo Carlos, “Os Sete Gatinhos”, abre caminho no créditos iniciais e suas variações musicais retornam  às vezes. Curiosamente, em certa passagem, ouve-se também o toque da música de Caetano. Além disso, uma canção de Roberto Carlos aparece como trilha que soa satírica em duas cenas de sexo com o cafajeste Bibelô (Antônio Fagundes) — cenas típicas da apelação erótica da Pornochanchada. 
 
Silene (Cristina Aché), a adolescente caçula, é trazida de volta ao lar pelo Dr. Portela (Ary Fontoura). Foi expulsa do colégio por matar uma gata prenha a pauladas. Do cadáver da felina saem sete filhotes vivos. Carregado em simbologia, Os Sete Gatinhos dá um passo e se estabelece como ficção fantasiosa. O filme de Neville enfatiza a breve passagem em que Noronha conta que conversa com um fantasma chamado Dr. Barbosa Coutinho. O ser do além é que lhe diz que o homem que leva sua família à perdição é um que chora por um olho só. Talvez indique que Noronha, o homem da tal lágrima profetizada, possui uma sensibilidade unilateral no esquema familiar que organizou. Afinal, o servidor coloca uma filha no altar como se fosse santa e as outras como subordinadas “corrompidas”, e também sua esposa (Telma Reston), que ele apelidou de Gorda.
 
Quando Noronha descobre que a suposta pureza de Silene não existe mais e ela está grávida, esforça-se para prostituí-la e colocá-la no seu conceito de “impuras”, em que divide, mentalmente, as mulheres de forma binária. Dois homens velhos, o comerciante gringo e o médico, são os primeiros clientes, fechando essa parte do filme e esses barracos de família. Outra parte de Os Sete Gatinhos começa numa piscina. Enviada ao encontro de um deputado, Arlete (Regina Casé), a filha mais rebelde e desbocada. Logo mais, na casa de Noronha, agora ex-contínuo, há uma visita para a filha Aurora (Ana Maria Magalhães). É a reta final e o folhetim sobrenatural destaca a cor vermelha no figurino das pessoas que moram ali. Um contraste com o “homem que se veste de virgem”, de roupa branca.
 
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Lista de fantasy feuilleton no subgênero supernatural fiction:
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