sábado, 4 de outubro de 2025

Banco dos réus

Casseta & Planeta:
 Seus Problemas Acabaram!

(farsa,
BRA, 2006)
de José Lavigne.
 


por Paulo Pacola

O Casseta & Planeta teve três passagens pelo cinema — se contar As Aventuras de Agamenon, o Repórter (2012) como parte das expressões do grupo humorístico — e, entre os três filmes, Casseta & Planeta: Seus Problemas Acabaram! é o que tem mais a cara do programa televisivo (1992–2010) da Globo. Igual, mas diferente. A corporação Organizações Tabajara, das propagandas mirabolantes na televisão, aparece em outro ângulo, o do banco dos réus. A metalinguagem dá um giro e o objeto satírico sai da posição de ferramenta e entra na posição de matéria-prima. E o jeito que isso ocorre, sobre até que ponto essa turma está disposta a satirizar esse empresariado ficcional, revela o grau de ousadia e a limitação romântica do projeto.

Por mais que seja um rascunho bem estilizado, pensando para acoplar esquetes e fazer desfilar alguns personagens conhecidos da televisão — Chicória Maria, a dupla policial ianque Fucker & Sucker, Seu Creysson como vilão... —, o roteiro de Seus Problemas Acabaram! tem a boa ideia de problematizar um dos pontos essenciais da identidade do grupo e da arte no tempo dos monopólios culturais. A burguesia das Organizações Tabajara continua desconhecida, sem rosto, mas ela aciona sua defesa perante as acusações de consumidores. O filme de José Lavigne não coloca a publicidade ficcional em primeiro plano, e sim advogados com gel no cabelo e publicitários paulistanos com rabo de cavalo. Nesse sentido, é curioso que o protagonista não seja um dos oito humoristas do grupo, mas o advogado idealista Botelho Pinto (Murilo Benício) que conduz a acusação contra a megaempresa.
 
No revezamento de papeis, o que interessa é manter a sensação de enredo unitário em meio aos pequenos blocos costurados. Maria Paula é deslocada para uma posição central de mocinha, enquanto Bussunda e os demais representam a descontinuidade na continuidade. Entre os recursos da sátira edificante, um desenho animado, bem animado — no sentido da alta mobilidade e do capricho dessa animação.

A farsa feita pelo Casseta & Planeta sempre apostou num tipo de humor em contato direto com o senso comum, absorvendo certos estereótipos de maneira pouco criteriosa. Nessa colagem tosca está sua força e sua fraqueza, passando por referências criativas até piadas maliciosas de quinta série. Há uma paródia de Cidade de Deus (2002) no filme. Embora seja até engraçada a breve participação do Zé Pequeno e da galinha fujona, o cinema brasileiro como conversa de taxista serve como um exemplo da parte mais superficial. Quando falava de política no programa o grupo transparecia, às vezes, uma visão “liberalóide”. A ausência desse assunto em Seus Problemas Acabaram!, então, contribui para direcionar a atenção para as contradições da iniciativa privada como força dominante na sociedade capitalista. Outra megaempresa fictícia, o Grupo Capivara, surge como reflexo da concorrência monopolista. Serve também para diferenciar a alta burguesia e sua ética empresarial.
 
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[0] Primeiro tratamento: 12/05/2024.
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Alternativa concreta

Amores Possíveis 

(dramédia,
BRA, 2001)
de Sandra Werneck.
  

 
por Paulo Pacola

A canção “Dueto”, de Chico Buarque e em regravação com Zizi Possi, indica, já nos créditos iniciais, o conteúdo que será desenvolvido em Amores Possíveis. O filme, contudo, potencializa a ideia apresentada ao se ramificar em diferentes caminhos, ilustrando a complexidade de escolhas dos indivíduos sociais. O ponto de partida está numa noite chuvosa em que Carlos (Murilo Benício) é deixado sozinho no cinema porque Júlia (Carolina Ferraz) não comparece ao encontro. Aí a realidade que vemos se desdobra em três dimensões paralelas, expondo o que ocorre quinze anos depois deste episódio.
 
A dramédia de Sandra Werneck se diferencia dos filmes água-com-açúcar justamente por esse desejo de colocar na tela o fato de que as atitudes não estão predeterminadas. Na esfera do ser social, determinação e finalidade se mesclam gerando uma grande margem imprevisível de situações cotidianas — diferente da menor variação nos dois níveis ônticos mais básicos: ser inorgânico e ser vivo. É claro que, mesmo na camada mais imediata de decisões, as coisas não vão para muito longe, pois há sim um conjunto de determinações que delimitam as ações. Há um leque de alternativas concretas e próximas. Os três futuros de Carlos apresentados no filme são: 1) Carlos se casou com outra mulher, Maria (Beth Goulart); 2) Casou-se com Júlia mesmo, mas a deixa e fica com Pedro (Emílio de Mello), amigo de trabalho; 3) Carlos não se casa e mora com a mãe (Irene Ravache). Entretanto, Amores Possíveis faz questão de desestabilizar cada realidade com a presença de Júlia na vida de Carlos, deixando aberta a leitura de certa ingenuidade idealista.

Essa montagem paralela traz vantagens e desvantagens. Especialmente para quem está vendo o drama edificante pela primeira vez, pode haver dificuldade de situar cada dimensão, visto que as mesmas personagens estão em circunstâncias distintas. Por isso, Werneck pesa a mão na caracterização para indicar a variabilidade social e isso soa um pouco como o fetiche da liberdade. O Carlos solteiro, festeiro e mulherengo quase parece outro personagem porque a performance de Murilo Benício realça a caricatura com essas características. Já a amargura da Júlia na realidade em que tem um filho com Carlos está no ponto certo em que mostra as contradições de sentimentos na sociabilidade monogâmica — aliás, é essa dimensão alternativa que dá ao filme de Werneck um charme e um algo a mais na média de dramas sobre relações afetivas, não só por haver um casal gay, mas por evidenciar as limitações nos núcleos familiares e no pensamento binário.

Um filme, por sua vez, também é feito de escolhas. E Amores Possíveis escolhe encerrar sua tripla história com o mundo do Carlos solteiro, pois é ali, onde menos se esperaria, que tudo toma o rumo mais clichê com Júlia, confirmando a tendência do destino amoroso traçado de antemão. Também confirma que é uma dramédia mágica quando a tela do cinema e a realidade se fundem. A fotografia carregada de Walter Carvalho parece mais adequada a este universo superficial, sem contradições profundas. Por outro lado, a existência de outros futuros após uma ida frustrada ao cinema, indicou também que as sequências podem se apresentar de formas diferentes, mesmo mantendo um grupo de pessoas num determinado círculo de proximidade.

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Lista de fantasy dramedy no subgênero magical fiction:
[0] Primeiro tratamento: 11/05/2024. 
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sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Brinquedo realista

Child's Play

(folhetim,
USA, 2019)
de Lars Klevberg.
 


por Paulo Pacola

Com gana de dialogar com a Geração Z, a a versão de Child's Play de 2019 se tornou uma obra destoante e alternativa. Uma proposta que se interessa por internet, smartphones e aplicativos; isto é, o cotidiano que predomina nos últimos anos. Contudo, ao priorizar essa superfície, o filme de Lars Klevberg se afasta dos fundamentos da franquia original. Esse Chucky (com voz de Mark Hamill) não tem nada de sobrenatural; ele é uma inteligência artificial de um enredo de ficção científica. O incômodo que bonecos geram, como representações de seres humanos nos fitando “calados” — medo esse que é a base na criação da série original —, não está presente na mesma intensidade quando o boneco em questão já anda e conversa “naturalmente” com seus donos, pois são brinquedos-robôs vendidos como qualquer tablet.
 
Ficção fantasiosa, os episódios longos da série original são formados por seis folhetins: Child's Play (1988), Child's Play II (1990), Child's Play III (1991), Bride of Chucky (1998), Curse of Chucky (2013) e Cult of Chucky (2017). No entanto, a experiência mais ousada é quando adere ao gênero da comédia: Seed of Chucky (2004). Distinção em duplo sentido, pois, além da abordagem comediesca, é uma sátira realista que ironiza Hollywood. Nesse ponto, é um filme do criador Don Mancini que se destaca ao lado da versão do Chucky robô.

Movido a labor, o Chucky em IA é fruto de uma angústia da classe operária encarnada em produtos que ganham vida própria e se voltam contra os cidadãos do mundo burguês. Nesse techno-feuilleton, o mercado se mostra como a grande força que domina. Dominação essa, ao mesmo tempo, sedutora e macabra. A Kaslan Corporation é uma empresa multinacional de diversos produtos eletrônicos — tal como a Apple, a Microsoft, a Samsung etc. — que instala uma filial em regiões terceiro-mundistas; ou, no caso desse Child's Play, “segundo-mundista”, ao mostrar uma linha de produção capitalista no Vietnã socialista — contraparte negativa da abertura controlada ao mercado, enquanto tática de desenvolvimento das forças produtivas. Conectado a isso, a mesma Kaslan faz lançamentos de produtos em comércios do outro lado do mundo. No caso, em Chicago (EUA), onde Karen Barclay (Aubrey Plaza) é uma servidora comercial. Trocando em miúdos: nesse filme, não há feitiços e fantasmas. Há fetiche da mercadoria.

Não há um final feliz propriamente dito no filme de Klevberg. Há apenas uma batalha vencida pela turma anarquista de Andy Barclay (Gabriel Bateman), sublinhando o aspecto de resistência urbana frente a um mundo distópico que gradualmente se desenha... talvez para algo parecido com M3gan (2022-) e The Eletric State (2025). A sátira se encerra com a publicidade da Kaslan, anunciando sua absolvição jurídica após o banho de sangue, e, em seguida, as mercadorias nos encaram.
 
Resíduos problemáticos: nota-se a manjada justificação moralista das mortes do namorado da mãe, que tem outra família e a engana, e de um nerd solitário do prédio, que é um voyeur pervertido. No entanto, isso é minimizado pelo fato de que a tendência assassina de Chucky ser alimentada pela amizade doentia que nutre por Andy, fazendo do robô um agente simbólico de certas mágoas e raivas que o piá possui na sua vida cotidiana — além do fato sugestivo de que o lazer dos jovens, vendo The Texas Chainsaw Massacre II (1986) na tevê, inspira esse Buddi. O gato de estimação e a vizinha bacana (mãe do detetive), ademais, são exemplos de vítimas “inocentes” na narrativa. Mais sintomático ainda é o fato desse Chucky, numa referência ao alienígena da dramédia E.T. (1982), brilhar a ponta do seu dedo controlando uma rede de tecnologia de ponta, que, apesar de ser feita pela atividade fundante, evidencia a falta de autocontrole da humanidade alienada.

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Lista de sci-fi feuilleton no subgênero techno-fiction:
[0] Primeiro tratamento: 25/08/2019.
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quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Ética idealista

Gladiator II
 
(tríler,
USA/UK, 2024)
de Ridley Scott.

 

por Paulo Ayres

O fantasma de Maximus (Russell Crowe) não chega a aparecer em Gladiator II, mas sua presença está incluída em menções e flashbacks. O general tornado gladiador, que realiza o sacrifício redentor no primeiro filme (2000), era o responsável pelo toque sobrenatural bem discreto. Tão discreto que deixa em aberto a leitura se ocorreu de fato ou é sua imaginação no momento da morte. Pela imagem dos Campos Elísios ter certo destaque no início e no fim, conclui-se que o entendimento mais enfático é Gladiator como ficção fantasiosa. Em Gladiator II, também ocorre algo parecido. No entanto, as breves passagens sobre o suposto além destacam a coloração cinzenta.
 
O que o novo tríler épico de Ridley Scott tem de mais interessante é certa proposta, com um quê metalinguístico, de aprofundar o espetáculo anterior como entretenimento popular. O que antes encheu os olhos com direito a biga e tigre no Coliseu, agora torna-se um circo sádico com a participação de um guerreiro montado num rinoceronte e, depois, um horror aquático com tubarão e barcos colidindo. Lembrando que, no contexto de ficção fantasiosa, essa historiografia transbordante não gera problemas. Pelo contrário, potencializa os recursos metafóricos.
 
O novo gladiador principal, Hanno (Paul Mescal), aumenta a rebeldia à la Spartacus, mesmo sendo o filho desaparecido de Lucilla (Connie Nielsen). Ela, por sua vez, é filha do imperador e filósofo Marcus Aurelius, que escreveu Meditações. Em Gladiator II, nos momentos de reflexão e de discursos imponentes, um pouco do estoicismo continua em diálogos. Entretanto, também há as contradições em meio a frases como “o que você faz em vida ecoa na eternidade”. Macrinus (Denzel Washington), o principal político vilão desse episódio, aponta para seu passado escravo. Seja no apogeu da pólis grega ou numa decadência romana, o modo de produção escravista é a contradição mais saliente entre outras. Isso não anula os aspectos de conquistas culturais e políticas de determinadas formações sociais, mas revela a limitação real da universalidade de algo como o complexo ético.
 
Os imperadores nesse filme são dois jovens irmãos. Pela iconografia da Roma retratada, é uma versão decadente do mito de Rômulo e Remo. Como contraste maniqueísta dessa dupla, além do lutador protagonista, há o General Acacius (Pedro Pascal) no drama edificante.

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Lista de fantasy thriller no subgênero epic fiction:
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Gráfico de radar

 Los Rechazados

(comédia,
DOM, 2025)
de Yasser Michelén.
 
 
 por Paulo Ayres

Depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, um dos debates mais intensos na história materialista — e de maneira mais específica na economia política — é se a Rússia atual é ou não um país imperialista. Independentemente das respostas apresentadas — imperialista, proto-imperialista e anti-imperialista —, é um evento marcante nas relações geopolíticas de nível internacional. O mundo unipolar pós-URSS volta, gradativamente, a ter aspecto bipolar ou com tentativa, ao menos, de ser multipolar. O risco da Terceira Guerra Mundial também está presente na ficção e agora foi renovado pela nova fase do capitalismo tardio.

Ironicamente, Los Rechazados se passa num velho submarino, chamado de 1844, comprado da Rússia capitalista pelo governo dominicano. A negociação com os russos, embora com direito aos gorros soviéticos, é para servir Washington numa operação em direção à China, a nova superpotência. Escalados e submergindo estão oito párias do país caribenho.

A missão secreta é comandada pelo veterano da Segunda Guerra, Capitão [Espaillat] (Salvador Perez Martinez), tendo o Suboficial Bermúdez (Fausto Mata) como seu braço direito para liderar as atividades dos recrutas dentro do submarino. A comédia política de [Yasser Michelén] tem um ponto de virada na mudança de rota e de roupa do capitão. Um vermelho destoante emerge entre uniformes azuis no confinamento marítimo. Não era exatamente o caso de um agente duplo, mas de redirecionamento estimulado por indícios de demência. No nível ficcional de Los Rechazados, o giro acentua a caduquice das coordenadas bélicas entre as nações.
 
Com a morte do capitão, Bermúdez assume o posto e a sátira edificante se concentra na sobrevivência da tripulação. De um tipo de bucha de canhão, o grupo passa a ilustrar, via grande mídia, a capacidade de resistência da humanidade em situações adversas. Isso se conecta com o tema dos riscos da guerra mundial, oferecendo um símbolo humanista. O enredo se passa em março de 2028, mas lida com algo que está sempre no radar no nosso mundo. Os momentos com músicas clássicas indicam que certas pompas e circunstâncias podem apontar para a superfície marítima ou afundar. Los Rechazados, ademais, além de ter um tom diplomático, trata de um auto-resgate.
 
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Lista de historical comedy no subgênero political fiction:
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segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Galeria realista

Unicornios

(tragédia,
ESP, 2025?)
de [ ].
 


por Paulo Ayres

É o início da tragédia audiovisual, Unicornios estabelece o fracasso de um relacionamento quando o descontentamento com o poliamor é posto como motivo de ruptura. A partir daí, a protagonista Isa (Greta Fernández) reina sozinha no enredo. Ou melhor, torna-se uma gravitação provisória e errante, em certo aspecto. Os dilemas da geração “alguma coisa” parecem ser o combustível do desenvolvimento do filme. Ela não é exatamente uma influenciadora. Pelo menos, não uma com a possibilidade de viver apenas disso. No entanto, o drama de [Àlex Lora] utiliza o tema contemporâneo até quando a imagem assume a verticalidade do telefone celular em vídeos curtos. É Isa observando e interagindo com seu ambiente. Nessa perspectiva, Unicornios desenvolve uma rebeldia que se perde em individualismo. Diferente do que a sinopse sugere, Isa experimenta e tropeça, mas isso não é devido a ela ser bissexual, feminista e poliamorosa.
 
A crítica estética do filme precisa observar esses três adjetivos com que Isa é caracterizada. Primeiramente, o que ocorre de fato. Pressionada para ser monogâmica pelo namorado, o poliamor é desfeito e ela volta a morar com a mãe, Mercè (Nora Navas), com quem não se dá bem. Obviamente que se pode falar em tendência poliamorosa nas atitudes das pessoas. Sutis ou escancaradas. Tendências. Se isso se efetiva numa vida cotidiana são outros quinhentos. Além disso, há uma intensificação gradual, mas as mudanças profundas nos costumes predominantes ocorrem a partir do século 20, ou mais fortemente a partir da sua segunda metade. Ou seja, os apetrechos instagramáveis da geração “alguma coisa” desembocam apenas na explicitação de que ocorre uma oscilação binária entre anarquia relacional e fechamento monogâmico. O que Unicornios enfatiza, nesse sentido, é o velho sexo casual. Não com uma valoração essencialmente negativa, mas com uma instabilidade de luzes e penumbras do cenário de balada. Antes disso, há uma fotografia rosada na cama de Isa, a bissexual.
 
Na gíria LGBT, unicórnio é uma pessoa que se relaciona ocasionalmente com casais. Esse conceito. de fato, já foi problematizado em textos teóricos por uma suposta coisificação que poderia haver em casais usando pessoas como se fosse um dildo. Generalização estranha, pois sempre há os casos concretos em que isso é apenas uma escolha de solteiro como outras. Curiosamente, o filme só se aproxima desse sentido de unicórnio quando há uma cena de ménage, embora talvez o par em questão não seja um casal de fato.
 
Então, como Unicornios segue Isa de forma íntima e consegue ser um drama realista? A resposta se sintoniza com o tema das exposições artísticas em galerias arquitetônicas e digitais. Entre os adjetivos destacados de Isa, faltou a sinopse informar que é uma artista underground querendo enquadrar intimidades. Ela, no entanto, aproxima-se tanto dos corpos que fragmenta seus objetos como se fossem quebra-cabeças. Junto com isso, o desejo de criar perfis “cults” em redes sociais e voilà: um retrato afetivo e expositivo da socialização contemporânea, independente se é um adolescente ou talvez um idoso. Aliás, o entusiasta, que se mostra cliente, é bem mais velho que ela. Nesse momento, o filme espelha a linha tênue entre formas de exposição, além de trazer a boa provocação para aqueles que juram que há uma barreira essencial entre a pornografia e o erotismo de pornô chique de festival.
 
E quanto às sinalizações de que Unicornios é um conto moralista? Certa amiga de Isa é que mais contribui com essa leitura, mas ela não estará lá para concluir seu raciocínio. A figura da mãe, sim, surge imponente, mas não é posicionada com nenhuma superioridade moral no retrato, havendo uma cumplicidade conflituosa. Aliás, num diálogo é comentado as diferenças nas ondas do movimento feminista. 
 
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domingo, 28 de setembro de 2025

Reino da necessidade

Cinderelo Trapalhão 
 
(farsa,
BRA, 1979)
de Adriano Stuart.
 

 

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por Felipe Bragança
Contracampo/2002

Os primeiros 15 minutos desse Cinderelo Trapalhão impressionam: a quase ausência de diálogos, as longas sequências de acrobacia, o jogo de expressões faciais, são uma das passagens mais marcadamente circenses do cinema brasileiro. Um narrador com ares de intertexto narrativo é a única referência direta de trama, intercalado as esquetes de perseguição e a primeira de uma série de cenas memoráveis: um show de touradas, onde Cinderelo (Didi) “fila” um lanche dos outros espectadores. A liberdade do improviso e da expressividade mímica de Didi ganham nessa cena um pequeno momento de eternidade.

Diretamente baseado no conto de fadas, o filme conta a história de um vagabundo que vive junto com três nobres cavaleiros (Dedé, Mussum e Zacarias), mas que descobre coragem ao ajudar uma família de fazendeiros ameaçados por um poderoso coronel. Longe da alegoria, o filme é uma fábula assumida, que brinca com seu aspecto fantasioso ao criticar o poder feudal dos grandes fazendeiros.

A narração nos lembra que se trata de um reino distante, “longe daqui”, uma forma jocosa de driblar os olhares da censura, mas também uma maneira de tratar da ganância por poder, sem perder a doçura, marca de seus protagonistas. Ainda que heróis, os Trapalhões aqui não são exemplos de bondade, não representam ídolos: são malandros, palhaços, por vezes covardes e sensatos, por vezes estúpidos.

Cinderelo é a síntese de um heroísmo que não se calca numa consciência julgadora mas num gesto de afetividade — que quase não percebe o perigo que corre, que não vê os limites do bom senso. Assim, funcionando entre a esperteza de pequenos truques e as trapalhadas que quase colocam tudo a perder, Cinderelo não tem utopias nem medo, age como que por prazer, brinca, debocha de si mesmo. Se compara à Cinderela original, brinca ter uma fada madrinha... mas não tem nada além de Gumercindo, um bode.

Dedé é o cavaleiro orgulhoso de seu suposto heroísmo — vive em troca de favores e de sua valentia, acompanhado por Mussum e Zacarias — é figura do herói estandardizado, que treme ao pensar um enfrentamento com o coronel mas aceita lutar em troca de terras, como um justiceiro de western.

Os esquetes do treinamento de Cinderelo junto aos capangas do coronel são pequenos espetáculos de mímica, atrações de acrobacia que parecem se descolar da narrativa e se entregar unicamente ao humor concreto dos picadeiros — familiar também ao diretor Adriano Stuart. São cenas em que, como na sequência em que Didi finge ajudar os capangas a destruir a casa dos pequenos fazendeiros, o humor do improviso, das gags, ganha ainda mais espaço.

Perfeita, aliás, é essa sequência ao conseguir trabalhar dois tons de paródia numa mesma imagem: os capangas do coronel nos remetem aos índios/mal-feitores da estrutura do western, e Didi, por dentro da cena, brinca com seus gritos e seus gestos de maldade, fingindo participar do quebra-quebra. Outra pérola.

O pastelão assumido da trilha sonora, da cena do casamento (inclusive com a presença das tortas na cara) ou do pé gigantesco que Cinderelo finge ter para evitar colocar a bota que o incriminaria, fazem de Cinderelo Trapalhão um dos melhores momentos do quarteto — conjugando o improviso dos gestos e falas à precisão de suas acrobacias. A brincadeira livre ao encaminhamento narrativo. Didi encarna perfeitamente o herói dúbio: impetuoso e tímido, habilidoso e atrapalhado, contido e incontrolável (como quando, num pequeno surto de raiva, começa a destroçar o carro do coronel ou derrama todo o sonífero no ponche da festa).

O final feliz conquistado é coroado com a antológica imagem do petróleo jorrando do pequeno terreno (quase uma quitinete) que cabe como recompensa a Cinderelo e a seu bode. Essa dádiva mágica inevitável (que vem justamente àquele que mais fez e menos pediu em troca) marca o tom desse pequeno conto moral sobre a humildade e o heroísmo. Sem fada madrinha, sem pedidos ou vara de condão, mas ainda um conto de fadas.

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